sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Carlos Leal - caricatura

Caricatura de Carlos Leal no Livro dos Quintanistas de Medicina do Porto 1932-1933.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Tempos da fadistação..."

[Carlos Leal, Porto Académico, n.º único de 1938, pág. 12.]


Porto Académico, que mundo de recordações invoca este nome, já velho, dos tempos da fadistação despreocupada e irrequieta. Quanta saudade e tristeza vão desenrolando diante dos meus olhos esses tempos em que pertenci, pode dizer-se, à última geração dos veteranos, dos velhos blagueurs, impenitentes perseguidores dos caloiros recém-chegados e revestidos ainda da velha casca provinciana e também dos grandes orientadores das maiores organizações artísticas, desportivas e jocosas que até hoje a Academia soube realizar.

Desde a coroação do Orfeão e Tuna Académica por terras de Madrid e Galiza em que se glorificaram as figuras do Dr. Clemente Ramos e Dr. Modesto Osório, às inúmeras excursões por terras portuguesas onde brilhavam para uns e irritavam a outros as piadas do Sobrinho das Barbas, do Mendes, do Zé Moreira, do João Ribeiro; desde as peças teatrais do Mendo e do Fariñas, à Aranha Verde e outras revistas do Poeta Rabeta, do Perry, do Zeferino, com música do Alberto David, do Lucena Sampaio, do Álvaro Rodrigues e outros, desde os actores consumados até aos célebres grupos de Girls que arrebatavam as plateias. Desde aquele clássico bailado das horas dançado pelo grupo dos barbudos, àquele colossal bailado do Bravo ali no S. João que deixou estupefactos todos aqueles que minutos antes o tinham visto entre-cenas. Desde as primeiras organizações do Carnaval que enchiam a cidade de gente vinda de toda a parte, até àquele célebre roubo da macaca ali nos Lóios que depois de doutorada honoris causa foi entregue com toda a solenidade na varanda do antigo Hotel Rainha...[1] tudo isso passa ainda com saudade diante dos meus olhos. E aquelas célebres excursões de cursos a terras da Galiza pletóricas de alegria moça e garotices... Nunca consegui saber quem foi o autor da piada que obrigou o Bravo a arrancar o forro do boné de polícia com que desempenhava brilhantemente aquele papel na comédia os Suicidas, uma das peças do reportório da nossa tournée por terras galegas.

Depois o pano desceu... e os antigos actores passaram a ser engenheiros, médicos, advogados jornalistas, etc.

Mas saudade bem grande, sinto eu ao recordar aquelas serenatas a horas mortas pelas ruas da cidade com o Aires, o Viamonte, o Milheiros, o Zé Taveira, o Rogério, o Amândio Marques, o Pereira Leite e o Guerra, vulgo tenor de cabeça.[2] Ao lado das notas sentimentais, quantas cenas picarescas duma comicidade natural e espontânea, passam ainda nas minhas retinas. No regresso das serenatas e depois de tremendas touradas aos gatos vadios, onde surgiam diestros valorosos, íamos acabar a noite ali no Transmontano, organizando sessões fadológicas debaixo da orientação do velho Mouzão já de cabeleira toda branca, do tenente Simão e outros carolas do fado e da guitarra...

Depois o fado morreu... morreu com as grafonolas e com o rádio. E foi esta grafonoloterapia e radioterapia que, ministrada em tão altas doses, provocou a dispepsia e o enjoo a toda a gente.
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Nunca mais se ouviu uma serenata... e aos meus ouvidos, chega ainda o eco da minha própria voz nas noites luarentas de há dez anos, para arrelia dos mestres e encantamento dos sonhadores e... das sonhadoras, como o ultimo boémio duma geração que passou.

Maio de 38

CARLOS LEAL






[1] Cf. os textos "Bons tempos" e "O rapto da macaca".

[2] É possível que este "Guerra, vulgo tenor de cabeça" fosse o "Guerra da Cabeleira" referido num episódio, contado anonimamente, e sem qualquer referência à data em que se terá passado, no Porto Académico, n.º único de 1962, p. 45:

E ASSIM SE PERDEU O CRÉDITO...

O Morais, dono duma casa de «bons petiscos» na Rua do Almada - casa muito frequentada, durante a noite, pela Academia de outros tempos - tinha a fama e... o proveito de deitar água no vinho. Sendo amigo da rapaziada e tanto assim que até fiava a... longo prazo, o Morais, que admitia todas as brincadeiras, não suportava, por princípio algum, que o acusassem de mixordeiro. Pobre daquele que se atrevesse, de cara, a acusá-lo da mistura!... Nunca mais lhe fiava.

Era certo e sabido que a boémia académica de então, de regresso de qualquer serenata, abancava ali a altas horas da madrugada e, certa vez, o Morais mostrou desejos de ouvir o «fadinho» defronte da sua porta. Os rapazes resolveram satisfazer-lhe a vontade e, numa madrugada de Janeiro, com o luar a bater em chapadas, o Morais tinha à sua porta uma serenata com quatro guitarras, dois violões, três tenores e grande acompanhamento da Academia.

Tudo correu muito bem e, para fechar a serenata, ecoou pelo espaço a voz tenorina do «Guerra da Cabeleira», num fado muito em voga:
O vinho é sangue de Cristo
Que nossas mágoas suaviza
E é, talvez, por causa disto
Que o Morais o baptiza...
Caiu Tróia... E o Morais cortou o crédito à Academia...