domingo, 2 de fevereiro de 2014

Uma "festa dos caloiros" em 1904


[O Alarme: diário republicano da tarde, Porto, 10/11/1904, pág. 2; disponível na Biblioteca Nacional Digital.]

A MOCIDADE
A Festa dos caloiros - Na Academia Politécnica - Cortejo - Uma charge - Coisas de espírito.

Enquanto se prepara a função

Por este começo de Outono, quando as grandes árvores da Cordoaria se desfolham e os primeiros frios começam de picar as carnes, a mocidade entra em bandadas para a escola. Uns voltam uma vez mais à antiga casa de ensino e outros fazem a sua entrada bisonha nos largos átrios e nas altas salas onde os lentes severos os consideram como massa de reprovação...
E desde longe os antigos estudantes, aqueles a quem o léxicon académico denominou "veteranos"[1], organizam a festa dos "caloiros".
A tradição coimbrã enxertou no Porto, um tanto mais humana, um pouco mais sem a bruta sanha do canelão da Lusa Atenas e com um tanto mais de intuito, de espírito e graça.
A procissão dos "caloiros" representa quase sempre uma "charge", é o comentário sadio da gargalhada fresca da mocidade à pústula do meio, à miséria moral ou intelectiva do agregado social.
Ontem ainda, os estudantes da Academia Politécnica vieram à rua, em procissão pícara e chistosa, que sendo cheia de risos era como acicate aferrado na lombada de "consagrados" e um protesto, burlesco embora, mas justo, a essa fúria de exibições peregrineiras que de há tempo se tem assoalhado por vales e montados destas leiras nacionais.

*

Cá fora, no largo fronteiro à Academia, estende-se uma multidão impaciente.
Olha-se a portada do edifício, onde um fervilhar agitado de estudantes põe uma grande nota vivaz e álacre.
Afoitámo-nos ao ventre do vetusto estabelecimento, onde em tempos cabulámos[?] as horas duma mocidade desocupada. Num compartimento, guardado por sentinelas implacáveis, fazem-nos declinar a qualidade de bisbilhoteiros de letra redonda para nos consentirem a entrada.
Um tumultuoso mundo de rapazes cruza vozes, dá a última demão nas caracterizações, atira um vivo traço no lábio ao canto da testa, tornando cada máscara de caloiro em tabuleta de droguista.
No edifício, lá dentro, vestem-se opas e sobre as cabeças assentam mitras e tigelas de barro vermelho. Ensaiam-se os compassos sonorosos nas cornetas de barro e nos pífaros vulgares. É um charivari de feira com graça clownesca, a estrondosa e formidável chalaça dos lábios irreverentes dos rapazes.
Enfim a procissão organiza-se. Assoma às portas da Academia. E uma aclamação sobe da massa de curiosos, estruge um aplauso, uma como saudação alegre à mocidade que sabe rir como ninguém e zurzir as chagas a tagante duro e salubre.

O desfile

Rompe a ladaínha e o cortejo desfila. À frente, abrindo o préstito, um caloiro levantando no ar um estandarte de linhol branco, onde destaca uma cadeira, tendo pregado um dístico a amarelo com esta cifra: 8000 réis. E no assento a legenda: "Para quem quiser cá pôr o c.". Ao fundo do painel: "O martírio dos caloiros e dos outros".
É um comentário à extorsão de 8$000 réis por cada cadeira de trabalhos práticos, agora imposta aos alunos da Academia.
Vem seguidamente o estandarte azul, onde a caricatura do conhecido lente da 7.ª cadeira"[2] destaca entre fórmulas químicas e a frase "Olhe que já é!". Logo, em painel cor-de-rosa a caraça característica do professor de Química Orgânica[3] e este ritornello do sábio, que passa de geração a geração como herança típica das vetustas fórmulas de ensino: "Precipitam tais quais". Circulando a cabela do lente, onde avinca o traço dum artista, símbolos de corpos e fórmulas químicas. Outro estandarte mostra a deusa Flora, irada e ameaçadora, num gesto indignado...
É o "bronze" da Cordoaria que assim a fez tomar daquele assomo de raiva... Se o autor da cachopa, com seus ares de esperar o Manel que vem co'as vacas, aparecesse a jeito, não há dúvida que Flora entraria no Aljube, entre o clamor das folhas que a titulariam de homicida.

A Flora, monumento de António Teixeira Lopes (1866-1942), inaugurado em Agosto de 1904, em homenagem ao horticultor José Marques Loureiro (1830-1898). [Fonte: Arquivo Municipal do Porto]

É um andor que passa agora, todo enfeitado a nabos, e logo o pálio - uma coberta de chita espetada no alto de quatro estacas - sob o qual um rotundo estudante, empunhando um boneco, entoa a ladaínha.
Tudo isto, este conjunto bizarro, pintalgado pelas mirabolâncias de cor: o vermelho vinho das tigelas de barro, o azul e escarlate das opas.
O cortejo rodeia a Academia e passa em face à Escola Médica onde os estudantes o acolhem e prestam as honras de hospitalidade...
Mas vai longe a resenha e no número único, vendido a favor do "Comité Académico Operário", conta-se sucintamente esta monumental procissão.
E a ordem do cortejo eles mesmos o descrevem na folha espalhada a rodos, mercê de 30 réis por cabeça.
Diz assim o número único:

Cortejo

Às 12 horas do dia, anunciadas pelo toque da palhada à Municipal, começar-se-á a organizar o esplendoroso cortejo no templo da Academia. O préstito abre por dois soberbos mancebos armados a fingir arautos, vestidos sem carácter e acompanhados pela charanga do venerando Sabastião das Oficinas com ele próprio a dar à cabeça. Seguem-se as diversas irmandades com os respectivos estandartes e guiões pela ordem seguinte:
Confraria do Mano Zé, Confraria do Berthelot português, Congregação dos filhos de Flória e manos da dita, Confraria dos Femeanos, das Belas e das Artes que carregarão com uma palma de rolha com um letreiro "abraçando a Estátua", etc.
Encorporar-se-ão também todos os padres "libarais" e da Companhia... dos Vinhos em disponibilidade que ladearão os vistosos bispotes das seguintes dioceses: Cardeal-Bispo de Veneza, Reverendo Conde de Coronel Pacheco; Bispo da Ferraria, Reverendo Bento Queijo[4]; de Trás das Paredes, Reverendo Conde do Sem'o-dás; do Campo dos Degenerados, Reverendo Pés e Tanas; da "Pá da Lavra", o Infrutífero da Fonseca; da Rua do Chá o célebre e mais que reverendo Porto por Quatro; e o conhecido asneiroso da Tâmara[?], Reverendo Zé dos Soizas.
Toda esta bispalhada puxará à padiola onde vai a soberba coroa que será deposta no cume de Forno onde se encontra a miraculosa Santa Flória.
Na ocasião desta imponente cerimónia subirão ao ar inúmeros foguetes de lágrimas para enternecerem os assistentes e será entoado o majestoso hino da Virgem Flória, composto expressamente por um conhecido maestro de reconhecido valor como seja o Reverendo Seixoso. Finda a cerimónia da coroa será ouvida por todos os assistentes que não sejam como portas uma oração de sabença em português de lei e de assunto apropriado para todos compreenderem, mesmo os convidados oficiais e de representação social.

Na Cordoaria - A nabos e batatas

Da Escola Médica o cortejo endireita à Cordoaria. A multidão atropela-se, converge por todas as ruas para o local onde se ergue a estátua ao horticultor Loureiro.
A procissão enfrenta com o monumento.
Um estudante - o bispo da festa - trepa ao sólio onde se ergue a Flora, entoa a ladaínha, agita o hissope e, solene, toma duma colossal coroa de nabos e batatas e coloca-a no cocuruto da cabeça da fêmea do monumento.
Estrugem as palmas e um poderoso riso de milhares de bocas vibra no ar macio. Agora todos os acólitos dispõem nabos no monumento, em maneira e jeito que mal se sabe ao fim de minutos se se trata dum bronze comemorativo, se de barraca de hortaliceira.
A multidão ri sempre a cada nova partida dos moços. A polícia mesmo, cordata, mantém a ordem, evita que os curiosos pisem os alegretes, ela própria sorri também, como se compreendesse a hora de justiça que estava decorrendo.
Tudo se congregou: o céu cheio de luz, a terra viçosa e fresca das relvas vigorosas e a "ordem", recolhendo a selvajaria usada, enfronhou um jeito de civilização.
Um estudante diz a oração de sapiência, onde numa irreverência se acoima[?] de porta de forno o sítio onde, no calhau do monumento, assenta a efígie do horticultor comemorado.
Breve, que as horas escasseiam e o espaço falha:
A procissão recolheu à Academia e tudo findou.
Bela festa moça, pelo espírito, pela graça e pela obra de justiça cumprida.
Que haja enfim alguém para tesourar[?] as orelhas dos consagrados!

Rui de Neira          

Notas

Num dos estandartes lia-se "Magna peligrinatio[5] Floream"...
- O número único titulava-se "Imponente plingrinação à Virgem Flória" que se venera no Jardim da Cordoaria (em frente ao biscoito da Teixeira).
No apontado número único, entre a esfuziada álacre de "verve", de espírito moço rutilando nas mil facetas do riso, destaca o hino à Virgem Flora.
A letra é assim:

Porque é que tal Virgem se chama Flória
Sem que nós saibamos bem a sua história?

E porque de noite se conserva lá,
Quanto em tal sentido mil posturas  há?

Posto que ela seja de bronze a valer,
Em peça tornada possa vir a ser.

Ou grosso canhão de grande resistência,
Parece que pede uma esmola à Assistência.

Nós vimos, ó Virgem da Cordoaria,
Levantar-te o peito co'a nossa alegria.

Se fazes milagres de grande espavento,
Levanta essas mamas p'ra nosso contento.

Se aos bispos concedes favor's colossais,
Não esqueças os pobres, humildes pardais.

Nós somos caloiros. Mitrados também.
Que vimos pedir-vos as graças. Amén.



[1] Não se leia a palavra "veterano" com o significado actual. Provavelmente ainda se aplicaria a qualquer estudante que já não fosse caloiro ("doutor", dir-se-ia hoje). Em Coimbra, no início do século XIX, era veterano quem tivesse terminado o primeiro ano (com aprovação); e nos anos 60 do mesmo século, eram veteranos os alunos do 4.º e 5.º anos (Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra, 1537-1990, Lisboa: Rei dos Livros, 1990, p. 470).

[2] José Diogo Arroyo (1854-1925) era o lente proprietário da 7.ª cadeira (Química Inorgânica).

[3] António Joaquim Ferreira da Silva (1853-1923), químico muito conceituado, era lente proprietário da 8.ª cadeira (Química Orgânica e Analítica) desde 1880.

[4] Esta é a referência mais evidente: Bento Carqueja, na altura lente substituto da 16.ª cadeira (Economia Política. Legislação de minas, industrial e de obras públicas) e simultaneamente colaborador do jornal O Comércio do Porto (era sobrinho de um dos fundadores e viria a ser co-proprietário e director), que tinha a sua sede na Rua da Ferraria (actual Rua do Comércio do Porto). Os outros bispos/bispotes ("bispote" é um termo popular para penico) são também referências a professores da Academia Politécnica (ou talvez a outras personalidades da época).

[5] No original está "peligrination" mas, a menos que o objectivo fosse misturar latim macarrónico com francês macarrónico, não faz sentido. Deve ser uma gralha (há muitas no texto original).