terça-feira, 6 de julho de 2021

Um «guitarrista exímio» esquecido: Aires Pinto Ribeiro


No seu texto memorialístico Carlos Leal «O Rouxinol do Ave», Amândio Marques enumera como guitarristas dos seus tempos de estudante no Porto «Aires Pinto Ribeiro, guitarrista exímio, Ernesto Brandão, Cícero de Azevedo, Manuel Pereira Leite e, dos mais modestos, o autor desta recordação». A sua auto-caracterização como «dos mais modestos» entende-se facilmente como modéstia retórica. Mas o realce a Aires Pinto Ribeiro, «guitarrista exímio», levanta as questões de saber quem era, e porque mereceu essa menção diferenciada.
Uma possível explicação parcial tem a ver com a diferença de idades entre Aires Pinto Ribeiro e Amândio Marques - uma diferença de quatro anos que é muito relevante se nos concentrarmos na faixa etária dos 15-24 anos. Pinto Ribeiro nasceu em 1899 e entrou para a Universidade do Porto em 1917, tendo ido para Moçambique em 1925; Amândio Marques nasceu em 1903 e teve intensa atividade como guitarrista no Porto enquanto ainda aluno do Liceu Rodrigues de Freitas, quando Aires Pinto Ribeiro já era estudante universitário. Não custa imaginar uma relação mentor/discípulo entre os dois, que teria ficado na memória de Amândio Marques, sem possibilidade de evolução para uma relação mais igualitária devido à ausência de Pinto Ribeiro a partir de 1925.
No entanto, há algo mais: alguns temas de Aires Pinto Ribeiro foram gravados no final dos anos 1920 por Amândio Marques, por Pereira Leite e, num caso, pelo excelente guitarrista não-académico António Coelho, conhecido como Barbeirinho (sobre os Barbeirinhos, v. Sobre os guitarristas "Barbeirinhos", do Porto). Se as gravações por estudantes mais novos parecem naturais, a gravação pelo Barbeirinho sugere uma reputação mais alargada de bom guitarrista, e provavelmente merecida.

Vejamos então as gravações de temas de Aires Pinto Ribeiro disponíveis no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado.

Capricho
gravações disponíveis em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=capricho
- versão de Amândio Marques (guitarra), acompanhado por Francisco Fernandes (2.ª guitarra) e José Pais da Silva (viola);
- versão do Trio de Guitarras e Viola, composto por António Coelho (Barbeirinho), António Martins e Augusto Nogueira.

Fado em dó sustenido menor
- versão de Amândio Marques (guitarra), acompanhado por Francisco Fernandes (2.ª guitarra) e José Pais da Silva (viola); disponível em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=do+sustenido+menor;
- versão de Manuel R. Pereira Leite (guitarra), acompanhado por José Taveira (viola); disponível em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=Pinto+Ribeiro (primeira faixa, identificada erradamente como «fá sustenido menor»).

Fado em fá sustenido menor
- versão de Manuel R. Pereira Leite (guitarra), acompanhado por José Taveira (viola); disponível em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=Pinto+Ribeiro (segunda faixa).

Sobre a vida de Aires Pinto Ribeiro, a fonte principal é uma biografia/elogio póstumo, com o título Dr. Aires Pinto Ribeiro, da autoria do Brigadeiro Vasco da Gama Fernandes e publicada em 1960 por Sopime Edições. Seguem-se os três primeiros parágrafos desse texto, que são os que mais nos interessam aqui:

«Nasceu o Dr. Aires Pinto Ribeiro no lugar de Vila Nova, freguesia de S. Cipriano, concelho de Resende, às quatro horas da manhã do dia 12 do mês de Setembro de 1899. Foram seus pais Francisco Pinto Ribeiro e D. Sílvia Augusta, de profissão comerciantes.
Decorreu a sua meninice na aldeia natal, entre a contemplação dos verdes horizontes, os estudos primários e o cultivo incipiente da música a que era naturalmente inclinado. Aos 9 anos, o orgulho paterno levou-o a participar numa sessão pública, dedilhando, com significativo agrado, uma viola.
Vieram depois o liceu e a Faculdade de Medicina cursados no Porto. Dele se pode dizer, adaptando uma frase coimbrã, que não faz dano a música aos doutores. Mantendo-se estudante sempre aplicado, deixou fama a sua guitarra, gemendo pelas ruelas do velho burgo, em serenatas que ainda recordam com saudade os velhos companheiros das noitadas boémias, que ficaram famosas na academia portuense.»

Podemos acrescentar, com base no Anuário da FCUP de 1914-15 a 1917-18, que Aires Pinto Ribeiro se inscreveu no curso FQN (preparatório para Medicina) em 1917-18. O Anuário da FMUP de 1919-20 a 1926-27 diz-nos que se formou em 1923, informação complementada pelo Brigadeiro Vasco da Gama Fernandes: «a sua formatura concluiu-se no dia 25 de Novembro de 1923, com a honrosa classificação de 16 valores».
Dois pormenores: na digressão de maio de 1922 do Orfeão Académico do Porto (e também da Tuna) a Espanha, os espetáculos terminavam com «Guitarradas e Fados pelos estudantes Aires Pinto Ribeiro, Aurélio Fernandes, Ernesto Cardoso e Viamonte» (Programa das festas a realizar em Espanha); no seu último ano na Universidade do Porto, Aires Pinto Ribeiro foi eleito para o Conselho Fiscal da Associação dos Estudantes do Porto (Porto Académico, 12/03/1923, p. 3).
[24/05/2023, mais duas referências: numa récita do Orfeão Académico em Vila do Conde em 1923, «Aires, o guitarrista já agora consagrado, arrebatou o público» (Porto Académico, 07/05/1923, p. 3); no ano seguinte, já formado, ainda participou pelo menos num espectáculo da Tuna em Viana: «os fados pelos Drs. Aires e Aurelio Fernandes e por Taveira e Leal fizeram vibrar intensamente numa emoção forte a todos os que tiveram o prazer grande de ouvi-los» (Porto Académico, 05/05/1924, p. 3).]
Depois de cursar a Escola de Medicina Tropical (Lisboa), partiu para Moçambique, aonde chegou em 30 de março de 1925. Fez boa parte da sua carreira em Moçambique, como médico e, a partir de 1942, diretor dos Serviços de Saúde da colónia. Parece ter prestado grande atenção à população nativa (pelo menos para os padrões da época), em particular criando «postos sanitários móveis», com enfermeiros nativos, de forma a chegar às povoações rurais. Em 1948 foi transferido para Macau, também como director dos Serviços de Saúde locais. Em 1950 foi nomeado vice-presidente do Conselho do Governo de Macau, tendo ficado encarregado do Governo por alguns meses em 1951 (sobre alguns momentos da sua estada em Macau, v. https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/aires-pinto-ribeiro/). Deve ter voltado para Portugal (Lisboa) em 1954, quando se tornou Inspetor Superior dos Serviços de Saúde do Ultramar. Estando doente já há vários anos, morreu em 4 de março de 1960, em Lisboa.
(Fotografia retirada do livro do Brigadeiro Vasco da Gama Fernandes, Dr. Aires Pinto Ribeiro, Sopime Edições, 1960)

Ao longo dos anos em Moçambique e Macau passou temporadas de férias (ou de repouso por motivos de saúde) em Resende e no Porto, mas não há indícios de que tenha mantido o cultivo da guitarra.

Entre 1926 e 1930 houve uma grande vaga de gravações comerciais de música portuguesa, incluindo fados de Coimbra e incluindo músicos do meio académico portuense (v. Gravações de estudantes do Porto dos anos 1920 no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado). Ausente em Moçambique, Aires Pinto Ribeiro falhou essa vaga de gravações. Se Amândio Marques, que gravou e escreveu no Porto Académico de 1962, foi caracterizado por Anjos de Carvalho e António Nunes como «[em 2006] um guitarrista totalmente esquecido», que dizer de Aires Pinto Ribeiro? Ficam três das suas composições, gravadas por outros, para recordarmos um guitarrista célebre na Academia do Porto do seu tempo.