sábado, 10 de junho de 2023

As gravações de José Taveira

Como ficou dito na entrada anterior deste blogue, José Taveira foi um cantor muito activo no meio académico portuense na primeira metade da década de 1920. Pelo final da década, gravou pelo menos dois discos como cantor, e colaborou como viola de acompanhamento em sete outros discos.

Como cantor, José Taveira gravou pelo menos os seguintes discos:

Fado Hilario / Fado da Sr.ª da Graça (Parlophon B. 33012)
José Taveira (c), acomp. Ernesto Brandão (g), Amândio Marques (g) e Paes da Silva (v)
Gravações disponíveis no Gallica (da Biblioteca Nacional de França) e no YouTube (v. abaixo).
[Sobre este disco, v. também o texto de António Nunes, «Velhas "frituras"», que revelou a sua existência. As transcrições das letras apresentadas abaixo foram copiadas desse texto.]

  •  Fado Hilario («A minha capa velhinha»)
  • Música: Augusto Hilário / Manassés de Lacerda (dois temas distintos de A. Hilário combinados num só, provavelmente por Manassés de Lacerda) / Letra: 1.ª e 2.ª quadras de Augusto Hilário, 3.ª de António Nobre

    A minha capa velhinha
    É da cor da noite escura;
    Quero nela amortalhar-me
    (Ai) Quando for p'ra sepultura.

    A minha capa ondulante
    (Ai) Feita de negro tecido;
    Não é capa de estudante
    (Ai) É mortalha d'um vencido.

    (Ai) Minha capa vos acoite
    Que é pr'a vos agasalhar;
    Se por fora é cor da noite
    Por dentro é cor do luar.
  •  Fado da Sr.ª da Graça [Um fado de Coimbra] («Nossa Senhora da Graça»)
  • Música: Paulo Correia de Sá / Letra: «popular»

    Nossa Senhora da Graça
    Que tantos milagres fazes
    'Stou de mal com meu amor
    Senhora fazei as pazes.

    Esse ar de santa a brilhar
    Que no teu rosto esvoaça
    Põe meus lábios a rezar
    Maria, cheia de graça.

Carta 9 de Abril (partes 1 e 2)
(Não sei o código do disco, nem tenho dados sobre os instrumentistas.)
Música e letra: Afonso Correia Leite [a letra cantada por José Taveira tem várias corruptelas]

    Ao escrever-te estas linhas
    Só chora o meu coração
    Porque as palavras são minhas
    Só as letras não são

    Nove d'Abril, meu amor,
    Triste data em que ditei
    [Tudo que de?] ti pensei
    Oh minha adorada flor!
    Bocados da minha dor,
    Fatalidades daninhas,
    Não pensas, não adivinhas (bis)
    O que eu sofro, minha querida.
    Estou entre a morte e a vida
    Ao escrever-te estas linhas.

    Numa horrorosa batalha
    No fim de grande cansaço
    Fui ferido, perdi um braço
    Numa chuva de metralha
    Pois se a nossa esperança falha
    Por acaso ou maldição
    Pois já nem possuo a mão (bis)
    Pra te dar em casamento.
    Que dor, estremecimento(?)
    Só chora o meu coração

    Olha, leva a minha mãe
    Muitos beijos e carícias,
    Diz que de mim tens notícias,
    Que sou vivo e que estou bem.
    Depois engana, também,
    Minhas pobres irmãzinhas,
    Inocentes, coitadinhas,
    Que sentem, como tu sentes (bis)
    Dize, não és tu que mentes
    Porque as palavras são minhas

    E enquanto a mim, desvanece
    Arranja outro namorado,
    Porque um pobre mutilado
    Futuro algum te oferece.
    Todo o nosso amor esquece
    Deixa pra mim a paixão
    E guarda em recordação
    Esta última cartinha (bis)
    Junto às outras porque é minha
    Só as letras o não são.


Como viola, José Taveira participou pelo menos nas seguintes gravações (a maior parte das quais já referida em Gravações de estudantes do Porto dos anos 1920 no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado):

I - Pais da Silva (v)
acomp. José Taveira (v)
Um disco e uma faixa de outro disponíveis em: Pais da Silva - Arquivo Sonoro Digital

Pas de Quatre
(Autor desconhecido - «popular»)

Padre Nuestro
(Enrique Delfino)

Amanhecendo
Tango (Pais da Silva)

II - Ernesto Brandão (g)
acomp. José Taveira (v)
Dois discos (quatro faixas)

Fado em sol maior (disponível em: Ernesto Brandão - Arquivo Sonoro Digital)
(Autor desconhecido - «popular»)

Fado em ré menor (disponível em: Ernesto Brandão - Arquivo Sonoro Digital)
(Autor desconhecido - «popular»)

Fado em lá maior (Parlophon B. 33007-I)
(Autor desconhecido - «popular»)

Fado em lá menor (Parlophon B. 33007-II)
(Autor desconhecido - «popular»)

III - Manuel R. Pereira Leite (g) e José Taveira (v)
Três discos (seis faixas), gravados em finais de 1928 ou início de 1929, disponíveis em: Manuel R. Pereira Leite, José Taveira - Arquivo Sonoro Digital (atenção: a primeira das duas gravações identificadas aí como «Fado Pinto Ribeiro (fá sustenido menor)» é na verdade «Fado Pinto Ribeiro (dó sustenido menor)», como se pode ler na etiqueta do disco)

Fado João de Deus (Variações) 1.ª parte
(João de Deus, filho - tema original)

Fado João de Deus (Variações) 2.ª parte
(João de Deus, filho - tema original)

Fado Pinto Ribeiro (dó sustenido menor)
(Aires Pinto Ribeiro)

Fado Magiolo
(Magiolo, Magiolly, Maggyoli, Maggiolli,...?)

Fado Pinto Ribeiro (fá sustenido menor)
(Aires Pinto Ribeiro)

Fandango Mirandês
(Manuel R. Pereira Leite)

domingo, 28 de maio de 2023

Viamonte e José Taveira, dois cantores de fados da primeira metade da década de 1920

Na segunda metade da década de 1920 o grande cantor académico do Porto era Carlos Leal (v. Carlos Leal «O Rouxinol do Ave», "Tempos da fadistação...", Registos fonográficos de Carlos Leal e Amândio Marques e Gravações de estudantes do Porto dos anos 1920 no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado).

Mas no início dessa década, quando Carlos Leal já andava em serenatas mas era ainda estudante do liceu, as estrelas eram outras.
No Porto Académico de 28/05/1923, p. 3, pode ler-se: "Haverá algum estudante que não saiba que Viamonte e Taveira são os azes (seja-me permitida a palavra?!) do fado entre o nosso meio? Parece-me que não!".

Esse cantor Viamonte, que também é referido nos textos de Carlos Leal e Amândio Marques (neste caso como "Viemonte", por gralha), seria certamente Francisco Viamonte de Sousa da Silveira (1897-1963), que também usou o nome Francisco Leite Correia de Almada de Viamonte da Silveira e era filho de José Viamonte de Sousa da Silveira, Visconde de Viamonte da Silveira. Esteve matriculado na Universidade de Coimbra (em Matemática?) entre 1915 e 1919. Neste ano transferiu-se para a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, inscrevendo-se nas cadeiras que lhe faltavam para completar os Preparatórios de Engenharia; depois ter-se-á inscrito na então chamada Faculdade Técnica da UP, pois viria a ser engenheiro civil.
Em maio de 1922 participou na digressão do Orfeão e da Tuna a Espanha, na qual os espetáculos terminavam com «Guitarradas e Fados pelos estudantes Aires Pinto Ribeiro, Aurélio Fernandes, Ernesto Cardoso e Viamonte» (Programa das festas a realizar em Espanha). Em 1923 participou numa excursão (com espectáculos) do 4.º ano de Medicina pelo sul do país, cantando fados acompanhado por Milheiro (Porto Académico, 09/04/1923, p. 4) e colaborou numa festa em benefício do Asilo de S. João, cantando fados (Porto Académico, 07/05/1923, p. 2).
Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. 34, verbete "Viamonte da Silveira (Viscondes de)") casou-se em 1925, e é natural que nessa altura já tivesse concluído o curso. Seja como for, não conheço qualquer referência à sua participação em actividades académicas depois dessa data.

Quanto a Taveira, trata-se de José dos Santos da Silva Taveira, nascido em 3 de Junho de 1901 em Goujoim, Armamar, filho de Francisco da Silva Taveira.
Inscreveu-se na FCUP em Outubro de 1921, provavelmente com vista a fazer os Preparatórios de Engenharia Civil, Mecânica, ou Electrotécnica; mas na FCUP não parece ter tido aprovação em mais do que três disciplinas (Química - curso geral, Desenho Rigoroso e Desenho Topográfico), nos anos lectivos 1921/22 e 1922/23 [Livro de registos de inscrições e exames dos alunos da Faculdade de Ciências (Nº 23)].
No início e meados da década de 1920, José Taveira foi muito activo como cantor de fados. Nos números do Porto Académico de 1923 e 1924 há várias referências a actuações suas em espectáculos, quer integrados em excursões de alunos da Faculdade de Ciências ou da Tuna quer na recepção à Tuna de Madrid que visitou o Porto; por exemplo, na excursão da Tuna a Vila Real, «os fados e as guitarradas pelo Taveira[,] Brandão, Cicero e Delgado agradaram bastante e foram bisadas» (Porto Académico, 28/05/1923, p. 1). O guitarrista que mais frequentemente acompanhava José Taveira era Ernesto Brandão, também da Faculdade de Ciências.
A partir de Abril ou Maio de 1924, José Taveira dividiu o palco com Carlos Leal: num espectáculo da Tuna em Viana por essa altura, «os fados pelos Drs. Aires e Aurelio Fernandes e por Taveira e Leal fizeram vibrar intensamente numa emoção forte a todos os que tiveram o prazer grande de ouvi-los» (Porto Académico, 05/05/1924, p. 3). Segundo Amândio Marques, «José Taveira e Carlos Leal, eram os solistas admiráveis [...] pela sua voz melodiosa, forte, encantadora e sentimental, do Orfeão e da Tuna. E eram, também, os cantores dos lindíssimos fados de então». Para além das actuações em palco, tanto Amândio Marques quanto Carlos Leal apontam José Taveira como participante habitual em serenatas. No entanto, é bastante claro que Carlos Leal rapidamente assumiu o primeiro plano. Foi logo em 1924 que o regente da Tuna Modesto Osório compôs para o jovem tenor a música «A Tua Serenata».
Depois do seu parco sucesso académico na Faculdade de Ciências, José Taveira deve ter-se inscrito no Instituto Superior de Comércio do Porto no curso superior consular que lá funcionava. O Anuário Diplomático e Consular Português de 1966 diz que era «licenciado em Ciências Económicas e Financeiras», o que deve ser uma referência a ter feito algum curso nesse Instituto. [Tentando explicar: o Instituto Superior de Comércio do Porto foi criado em 1918, à imagem e com estrutura exactamente igual à do Instituto Superior de Comércio de Lisboa, que já existia desde o início da República; estes dois institutos ofereciam, entre outros, o curso superior consular; em 1930, o Instituto Superior de Comércio de Lisboa passou a chamar-se Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) e foi um dos institutos fundadores da Universidade Técnica de Lisboa; em 1933, foi extinto o Instituto Superior de Comércio do Porto, funcionando transitoriamente até 1936 para os alunos já inscritos poderem terminar os seus cursos; durante esse período transitório, foi utilizado o nome Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras do Porto - v., p. ex. «A "Festa da Pasta" no Instituto Superior de Ciencias Económicas e Financeiras», Commercio do Porto, 21/05/1935, p. 6.]
Pelo final da década, José Taveira gravou vários discos, quer como cantor quer acompanhando antigos colegas à viola (a próxima entrada deste blogue será sobre essas gravações). Em Maio de 1929 estavam para ser postos à venda os discos em que acompanhava o guitarrista Manuel Pereira Leite, mas num espectáculo em que este tocou as mesmas músicas, o acompanhamento à viola coube a Pais da Silva («Festa de caridade no Theatro S. João», O Commercio do Porto, 05/05/1929, p. 2) - o que pode indicar que José Taveira estaria já, possivelmente, a desligar-se da vida académica e musical.
Em Fevereiro de 1930, José Taveira entrou para o quadro diplomático e consular. Foi cônsul, entre outros sítios, em S. Paulo (1934-1935), México (1941-1945) e Banguecoque (1953-1955). Terminou a carreira em Lima (Peru), como encarregado de negócios (1961-1964) e embaixador (1964-1966).
O n.º único de 1962 do Porto Académico também inclui um texto seu sobre os tempos de estudante no Porto, («Mira, mira! Son los mismos!...», p. 24) assinado por «José Taveira - Cônsul de Portugal em Lima (Peru)». Curiosamente, em vez de se focar em glórias como solista da Tuna e Orfeão, serenateiro ou cantor com discos gravados, esse texto centra-se na história da excursão do 3.º ano de Ciências à Galiza em 1923, que tinha sido um fracasso - a um público que esperaria uma tuna, os excursionistas apresentavam fados e guitarradas e uma comédia em português, com piadas que a assistência não compreendia.
José Taveira morreu em Abril de 1967, em Lisboa (Diário de Lisboa, 04/04/1967, p. 17).

Agradeço a Manuel Marques Inácio a ajuda na biografia de José Taveira.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

A Entrega das Pastas de 1899

Quando, há mais de dez anos, escrevi aqui sobre quando foi a primeira Queima das Fitas, conjecturei que teria sido em 1901 a primeira Festa da Pasta, ou Entrega da Pasta - uma tradição surgida na Escola Médica que está na origem da Imposição das Insígnias e mais geralmente da Queima das Fitas do Porto. Posso agora dizer que estava errado: o costume da festa da entrega da pasta data pelo menos de 1899.

Sei isto devido a um livreto que os quintanistas (=finalistas) da Escola Médico-Cirúrgica do Porto mandaram imprimir, com versos cantados e/ou recitados na Entrega da Pasta e num jantar de despedida em Maio de 1899.
Podem ver-se em baixo a capa e algumas páginas desse livreto, incluindo os «versos cantados na cerimónia da Entrega das Pastas»:

Para entender melhor o contexto provável destes versos, veja-se os parágrafos sobre a Entrega da Pasta em Quando foi a primeira Queima das Fitas?.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Os discos e as partituras de Manassés de Lacerda

[Entrada actualizada em 22/04/2023. A mudança mais relevante é a inclusão das imagens das partituras.]

Como já foi dito neste blogue, em Manassés de Lacerda e a sua passagem pelo Porto, Manassés de Lacerda gravou vários discos, no Porto, por volta de 1905-1906.

O ano certo em que foram feitas as gravações não é conhecido, e tanto quanto sei não é impossível que datem de 1904, na sequência do êxito de Manassés na digressão da Tuna Académica da Universidade de Coimbra pelo norte do país. Mas a edição de partituras dos seus fados por Artur Barbedo, com clara associação aos discos, pode ser datada de 1906, como veremos abaixo. Assim, parece-me mais provável que as gravações tenham sido feitas em 1905 e/ou 1906.

Apesar de terem tido grande sucesso na sua época, os discos de Manassés de Lacerda vieram a cair no esquecimento, eclipsados pelos sucessos ainda maiores de cantores como António Menano na década de 1920. Em 2006, conhecedores tão profundos da história da música de Coimbra como José Anjos de Carvalho e António Nunes ouviam pela primeira vez uma gravação de Manassés: http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/10/fado-maria-rosto-do-disco-de-78-rpm.html.
Actualmente a situação é diferente, já que doze dessas gravações estão disponíveis para audição no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado, digitalizadas a partir de discos da colecção Bastin.
É necessário, no entanto, ter algum cuidado porque, infelizmente, os responsáveis do Arquivo não distinguiram Manassés de Lacerda do "tenor Lacerda", um cantor que se terá aproveitado da popularidade do primeiro para vender discos na década de 1910. Isto é: nem todas as gravações identificadas no Arquivo como sendo de Manassés de Lacerda são do próprio. No entanto, a leitura das etiquetas dos discos, bem como a audição das gravações, permite facilmente fazer esta distinção.

Vejamos então as gravações disponíveis, genuínas, de Manassés de Lacerda, notando que há duas séries de discos, comercializados por editoras distintas.


(Etiqueta do disco Beka 7314, imagem retirada de Repertório de Manassés de Lacerda (1).)

Para a editora alemã Beka, Manassés gravou com acompanhamento de guitarra os seguintes discos, disponíveis em https://arquivosonoro.museudofado.pt/interprete/189/manasses-de-lacerda (facilmente reconhecíveis pela etiqueta amarela):

Canção da Encosta
(Beka 7316)

Fado Corrido
(Beka 7318)

Fado das Ruas
(Beka 7314)
[Sobre este tema, v. Repertório de Manassés de Lacerda (1)]

Fado do Porto
(Beka 7374)

Fado do Povo
(Beka 7319)

Fado Hilario
(Beka 7373)

Fado Serenata
(Beka 7320)


Para a Gramophone Co. (e/ou para a Zonophone, que era uma filial da Gramophone), Manassés gravou com acompanhamento de piano os seguintes discos, disponíveis em https://arquivosonoro.museudofado.pt/interprete/189/manasses-de-lacerda:

Fado Amoroso
(disponível em duas cópias, G.C.3-62293 (?) com etiqueta cor de vinho e G.C.-62382 com etiqueta preta)

Fado das Lágrimas
(disponível em duas cópias, G.C.3-62292 (?) com etiqueta cor de vinho e G.C.-62385 com etiqueta preta)
[Sobre este tema, v. Fado das Lágrimas e Fado das Lágrimas]

Fado dos Sonhos
(disponível em duas cópias, G.C.3-62296 (?) com etiqueta cor de vinho e G.C.-62386 com etiqueta preta)

Fado Hilario
(disponível em duas cópias, Gra.3-62297 (?) com etiqueta cor de vinho e G.C.-62384 com etiqueta preta)

Fado Maria
(Zo. X-52063)

Reforço que as restantes gravações disponíveis em https://arquivosonoro.museudofado.pt/interprete/189/manasses-de-lacerda (Fado Ciumento, Fado da Pálida madrugada com variações de flauta, Fado das Salas, Fado Lisboa e Maria Paula) não são de Manassés de Lacerda, e sim do "tenor Lacerda".


Paralelamente, o comerciante de gramofones portuense Artur Barbedo editou duas ou três séries de partituras de Fados e canções portuguezas cantadas por Manassés de Lacerda, para cylindros e discos de machinas fallantes; Porto: Litographia Portugueza. As brochuras não aparecem datadas, mas a 1.ª série deu entrada na Biblioteca Nacional de Lisboa em Março de 1906, e a 2.ª em Maio do mesmo ano [Boletim das Bibliothecas e Archivos Nacionaes, 5.º ano (1906), p. 102 e 200]; a 3.ª série parece não ter chegado a ser depositada na BN.

Se a capa indicava que as partituras eram de temas gravados por Manassés, a contracapa reforçava a associação: Artur Barbedo não só vendia discos e gramofones, como os reparava e tinha mesmo um "atelier d'enregistrar". Terá sido aí, no 1.º andar do n.º 310 da Rua Mouzinho da Silveira, que Manassés de Lacerda gravou os seus discos?

No entanto, note-se que a correspondência entre os discos e as partituras não é perfeita: dos 30 temas com direito a partitura, apenas 10 aparecem nos discos referidos acima (mas é possível que a colecção Bastin não incluísse todos os discos gravados por Manassés); um dos fados gravados por Manassés não parece constar em nenhuma das séries (Fado do Povo, Beka 7319, talvez o mais «afadistado»; a letra aparece como «Pregões de Lisboa» em Alberto Pimentel, A triste canção do sul, 1904, 110-112); alguns temas têm títulos diferentes (e há mais algumas pequenas diferenças).

A partir de 1914 as três séries tiveram reedições por parte de uma editora portuense especializada em música impressa, a Casa Moreira de Sá. A capa das brochuras mantinha-se, mas sem referências a discos nem gramofones. António Nunes mostrou que pelo menos uma dessas reedições é de 1920 ou posterior; além disso, as séries editadas por Moreira de Sá tiveram também distribuição no Brasil [Repertório de Manassés de Lacerda (1)]. Conheço ainda um exemplar da 5.ª edição da 3.ª série, que foi oferecida à Associação Académica do Porto em 1925 por José Belchior Júnior (o qual era autor de várias músicas, incluindo um fox-trot "Capa e Batina", publicadas pela Casa Eduardo da Fonseca, mas isso será outra história).

Os temas constantes de cada uma das três séries são os seguintes:

1.ª Serie

Fado das ruas («Oh pallida madrugada») [disco Beka 7314]

Fado amante («Eu hei-de ir ao cemiterio»)

Fado da saudade («Sumia-se a barca, eu chorava»)

Canção da encosta («Quando subo pela encosta») [disco Beka 7316]

Fado amoroso («Meu canto ao vento fluctua») [disco G.C.3-62293 / G.C.-62382]

Fado de Coimbra («A lua, pastor bendito»)

Fado da briza («A brisa dizia á rosa»)

Fado Maria («Maria tu és na terra») [disco Zonophone X-52063]

Fado das lagrimas («Oh! fonte que estás chorando») [disco G.C.3-62292 / G.C.-62385]

Fado serenata («Ai que martyrio não visto») [apesar de um dos discos acima ter o título «Fado serenata», não se trata deste tema; v. abaixo Fado Bohemio]

2.ª Serie

Fado Hylario Moderno («Eu quero que o meu caixão») [discos Beka 7373 e G.C.3-62297 / G.C.-62384, em ambos como Fado Hilario]

Fado Nocturno («Na noite calada e erma»)

Fado Ideal («Morena teus olhos bellos»)

Fado das Rosas («Deixas-me óh; formoza pomba») [disco G.C.3-62296 / G.C.-62386, como Fado dos Sonhos]

Fado Corrido, 1.º («Meu doce fado és tão triste») [disco Beka 7318, como Fado Corrido]

Fado Primavera («Cantarei na despedida»)

Talvez te escreva («Talvez te escreva se as saudades»)

Fado de Monte-mór («Tu não vês meu amorzinho»)

Fado Estoril («Á beira d'alvo regato»)

Fado Brejeiro («Anda o sol a mal com a lua»)

3.ª Serie

Fado corrido 2.º («Amor é sonho que mata»)

Adeus-Canção («A ti, que em astros desenhei nos ceus»)

Fado Bohemio («Não chores violão, não chores») [disco Beka 7320, como Fado Serenata]

Fado de Lisboa («Passarinhos, meus amigos»)

O meu fado («Na minha campa desfolha»)

Fado de Guimarães («A trança que tu me déste»)

Fado triste («Envolto nos teus cabelos»)

Fado da Minha Terra («Das lagrimas faço contas»)

Fado do Porto («Ouvi dizer de amor louco»)

Serenata d'Amor («Acorda, á janela, vem manso e de leve»)

(As partituras da 3.ª séries foram digitalizadas a partir de fotocópias que me foram cedidas pelo dr. Carlos Teixeira, há mais de 25 anos.)

Manassés de Lacerda e a sua passagem pelo Porto

O nome de Manassés de Lacerda é conhecido hoje em dia (quando o é) principalmente através do Fado Manassés, um clássico do repertório do Fado de Coimbra.
(Diga-se, a propósito, que o próprio cantava e gravou essa composição com o nome "Fado Maria" e uma letra distinta das com que é cantado actualmente; e que mesmo essa versão era uma adaptação do Fado Mont'Estoril de Reynaldo Varella, que tinha ainda outras letras: v. O mesmo autor, a mesma música, vários títulos e Fado Monte Estoril - Reynaldo Varella.)
É também provável que tenha sido Manassés quem juntou e adaptou dois temas de Augusto Hilário, dando origem ao Fado Hylario Moderno que é (quase) o que hoje conhecemos como Fado Hilário; v. Anjos de Carvalho e Murta Rebelo, Evocação de Hylário na Coimbra do seu tempo - origem e evolução do chamado Fado Hilário, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1998.

No entanto, para além de uma ou outra composição, Manassés de Lacerda é um nome importantíssimo na afirmação do género musical geralmente conhecido como Fado de Coimbra. No mínimo, poderemos dizer que se trata do primeiro cultor deste género, oriundo do meio académico, a gravar discos com grande sucesso. Este sucesso pode ser avaliado pelos factos de nos anos seguintes o tenor António Ferreira ter gravado, no Porto, alguns discos com a indicação expressa "stylo Manassés de Lacerda" e de um outro cantor, em Lisboa, ter gravado algumas das composições celebrizadas por Manassés, apresentando-se simplesmente como "tenor Lacerda" (para enganar compradores incautos?). Na verdade, embora o "estilo Manassés de Lacerda" tenha sido depois ultrapassado, constitui provavelmente uma etapa fundamental na constituição do Fado de Coimbra como género musical reconhecível. Sobre o "estilo Manassés", v. também o texto de António M. Nunes sobre o Fado Maria em http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/10/fado-maria-rosto-do-disco-de-78-rpm.html.

Quanto a dados biográficos, importa ressaltar que foi o antigo estudante de Coimbra brasileiro Divaldo Gaspar de Freitas quem primeiro recolheu elementos que lhe permitiram escrever um resumo biográfico de Manassés: Divaldo Gaspar de Freitas, Emudecem Rouxinois do Mondego, São Paulo, 1972, p. 111-119. Aqui tentarei acrescentar alguns pormenores, particularmente relativos à sua passagem pelo Porto.

Manassés Ferreira de Lacerda Botelho nasceu em Sabrosa, Trás-os-Montes, em 1885. Frequentou o Liceu de Coimbra de 1900 a 1904, mas não terminou o ensino secundário. Em Coimbra tornou-se famoso como cantor.
Num texto datado de 1904, Herlandér Ribeiro descrevia assim as serenatas dominadas por Manassés:
"As novidades para mim, que sou lisboeta: as serenatas que passam á porta, grupos de estudantes, o Manacés a cantar o fado, ao violino o Francisco Pereira e Mauricio Costa, á guitarra Adelino Sá e Manoel Alegre, com ferrinhos o Graça, de Loanda e, de viola a tiracolo, o Adelino Figueira, têem na verdade, um aspecto de orquestra agradável. Manacés canta lindamente o fado, e pelas noites tranquilas de Coimbra-alta, este conjunto de voz e instrumentos chama todos ás janelas, e atraz da serenata vão centenas de pessoas, que se apertam nestas ruas de pouco mais de um metro de largura, como são as do Loureiro e Arco do Bispo." [Herlandér Ribeiro, Cartas de uma tricana, Lisboa: edição fora do mercado, 1936, p. 119-120]
Em 1903-1904 integra a Tuna Académica da Universidade de Coimbra (tal como outros cinco estudantes do Liceu) e sobressai numa digressão pelo norte do país. Segundo um jornal da Póvoa de Varzim, "O melhor da noite foi, sem dúvida, a voz trinada e maviosa de Manassés, o émulo distintíssimo das serenatas de Coimbra, o retinto e adorável sucessor do chorado Hylario" [António José Silva Nascimento e José António Silva Nascimento, Sobre a Tuna Académica da Universidade de Coimbra, 1888-1913, 2.ª ed., 2013, p. 193].

No ano lectivo 1904-1905, Manassés transfere-se para o Colégio S. Carlos, situado na rua Fernandes Tomás, no Porto, mas continua a cantar: segundo o seu condiscípulo Fernando de Sá Moreira, "ali, costumava vir para a rua cantar fados, com a sua bem timbrada e extensa voz, com a característica de notas expressivamente prolongadas" [Divaldo Gaspar de Freitas, Emudecem..., p. 115-116].
Ainda nesse ano lectivo, Manassés participa em espectáculos com a Tuna Académica do Porto. Em 16 de Março de 1905, houve um sarau organizado pelo Grupo Académico do Porto "a favor dum estudante pobre", no Teatro Príncipe Real (actual Teatro Sá da Bandeira). Segundo Ernesto Varzea, que consultou o programa, a seguir à abertura pela Tuna seguiam-se "fados cantados pelo académico Manassés de Lacerda, acompanhado à guitarra e violas pelos académicos Moniz e Casimiro Barbosa (o antigo director dos Correios Canto Moniz, pai do clínico do mesmo nome, e o ilustre professor Raúl Casimiro)". No mesmo sarau, Manassés participou ainda numa farsa e recitou um monólogo. [O Tripeiro, V série, vol. 1, p. 21]
Nove dias depois, a Tuna foi a Aveiro promover um sarau "a favor da fundação de uma bibliotheca gratuita para estudantes pobres", com um programa muito semelhante. Mais uma vez, incluía "Fados, cantados por Manassés de Lacerda" [Campeão das Províncias, 25/03/1905, p. 2].

Um parêntesis sobre os acompanhadores de Manassés de Lacerda no Porto:
António Borges do Canto Moniz Júnior (Graciosa, 12/09/1883 - ?, 09/03/1949) era filho do inspector dos impostos, professor, literato e tocador de banza amador António Borges do Canto Moniz (Angra do Heroísmo, 27/02/1846 - Porto, c. 1916). [Acrescentado em 24/05/2023: no ano lectivo 1904-1905 estava matriculado no Instituto Industrial e Comercial do Porto, no curso superior de Comércio.] Foi responsável pelos Correios do Porto entre 1921 e 1927, e mais tarde director dos CTT do Ribatejo. Mais interessante: era pai do cirurgião Luís Canto Moniz, um dos melhores amigos de Carlos Leal, o mais importante cantor de fados da academia do Porto nos anos 1920 (v. as referências a Canto Moniz em Carlos Leal «O Rouxinol do Ave»).
Raul Casimiro Barbosa (Régua, 23/04/1885 - ?, 1963) estudou no Liceu Central do Porto e no Instituto Industrial e Comercial do Porto [acrescentado em 24/05/2023: esteve inscrito neste Instituto de 1900 a 1907, em vários cursos]. Trabalhou nos Caminhos de Ferro, mas destacou-se na música: foi um dos fundadores e primeiro director artístico do Orfeão do Porto, maestro de diversos outros coros, professor de canto coral (nomeadamente no Conservatório de Música do Porto), compositor de música para coro e impulsionador do orfeonismo. V. https://anossamusica.web.ua.pt/esprofile.php?esid=909.

Por volta de 1905-1906, Manassés gravou diversos discos, no Porto, para duas editoras distintas: Beka e Gramophone/Zonophone. Em paralelo, o editor portuense Artur Barbedo editou três séries de partituras de fados e canções cantados por Manassés (com a indicação "para cylindros e discos de machinas fallantes"). Já acima se referiu o sucesso (para a época) desses discos. As partituras tiveram várias reedições, pela também portuense Casa Moreira de Sá, até cerca de 1920.
Uma próxima entrada neste blogue dará mais pormenores sobre estes discos e partituras.

Manassés de Lacerda casou-se no Porto em 1908 e, segundo Divaldo Gaspar de Freitas, "nesse mesmo ano" o casal emigrou para o Brasil. Durante muito tempo pensei que "nesse mesmo ano" pudesse ser um mal-entendido: poderiam ter partido, por exemplo, menos de um ano depois de terem casado. Isto porque um texto memorialístico publicado no n.º único de 1962 do Porto Académico sugeria que Manassés teria participado na digressão que a Tuna Académica do Porto fez em Fevereiro de 1909 à Galiza. No entanto, tal não aconteceu: segundo o jornal El Noroeste, da Corunha, o espectáculo da Tuna incluía guitarradas e fados, mas "cantados por los estudiantes Mario y Alvaro Costa y Catao Limoés" (descontadas gralhas e dificuldades com transcrição de nomes portugueses, deve tratar-se da formação constituída pelos irmãos Mário e Álvaro Barreto Costa e por Catão Simões Júnior, que estava activa ainda em 1912, na altura da fundação do Orfeão Académico do Porto).

No Brasil, pelo menos numa primeira fase, Manassés manteve actividade artística [Uma tournée de Manassés de Lacerda no Brasil (1915)].
Em 1917, regressou a Portugal, mas voltou definitivamente ao Brasil em 1919.
A partir daí, parece ter ido caindo no esquecimento. Nos últimos anos de vida convivia apenas com a família e meia dúzia de amigos, recusando alguns convites para reuniões de antigos estudantes de Coimbra no Brasil.
Morreu no Rio de Janeiro, em 18 de Maio de 1962.

[24/05/2023: Agradeço ao Museu do ISEP o acesso aos livros de matrículas do Instituto Industrial e Comercial e a preparação prévia da informação.]

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Alguns testemunhos sobre praxe/troça/recepção ao caloiro no Porto antes da República


Academia Politécnica, 1860/61

[José Augusto Carneiro, "As Bodas de Oiro dos alunos do 1.º ano de matemática da Academia Politécnica do Porto no ano lectivo de 1860-1861", O Tripeiro (1.ª série), 2.º ano, n.º 65, 10 de Abril de 1910]

Dotado de uma natureza franzina, tivemos de nos sujeitar de entrada às provas a que os caloiros eram submetidos e, depois de considerado pronto, compartilhamos também, com uma petulância que não nos estava na índole, só para aparentar uma certa energia, da troça feita a outros condiscípulos ainda mais caloiros que nós.
É bom notar, porém, que nessas provas a que se sujeitavam os caloiros na Academia Politécnica do Porto não entrava o famoso canelão adoptado na Universidade de Coimbra, e outros penosos e censuráveis tratos de que têm resultado graves conflitos e desgraças.
Na Academia Politécnica do Porto limitavam-se os veteranos[1] a desfrutar[2] os pobres caloiros que passavam pela rua em frente ao edifício e que mais se prestavam a isso, por ocasião do Carnaval, e algumas vezes até fora dessa época.


Academia Politécnica / Escola Médico-Cirúrgica, c. 1900

[António de Almeida Garrett, "Já lá vão mais de 50 anos!...", Porto Académico, n.º único de 1962, págs. 27-29]

Começarei pelo primeiro passo: o ingresso dos caloiros da Médica. Matulões dos últimos anos juntavam os neófitos à porta da Politécnica, frente à Cordoaria, e de ali os levavam em cortejo, num alarido de gaitas estridentes e álacres chalaças, até à entrada da Escola, para a simbólica adopção de discípulos de Esculápio. Escolhiam os mais graúdos para pegar na tosca padiola, destinada ao bobo da festa, ao penico e competente vassourinha, a peça essencial do cortejo. Naquele ano fui eu o padiolado, por determinação do grupo organizador, chefiado por um barbaças, o Teixeira Bastos, mais tarde colega na docência e queridíssimo amigo.
[...] duas festanças de todos os anos, a da entrada dos caloiros e a da entrega da pasta ao findar do quinto ano [...]

[Artur da Cunha Araújo, "Em outros tempos", Porto Académico, n.º único de 1937, pág. 25]

Quando nos iniciamos na pesada tarefa de conseguir uma carta, ao transpormos pela primeira vez os ombrais da Politécnica, foi pela “porta do cavalo” que conseguimos escapar ao vexame do cachaço e da chacota acerada dos veteranos, capitaneados pelo “Trinta”!
[...] Os caloiros tremiam ante as barbas patriarcais do Comendador e do Trinta e suavam ouvindo as injecções mordentes do Godide e do Serafim de Barros...


Academia Politécnica, 1904

["Aconteceu há 50 anos...", O Tripeiro (5.ª série), ano X, Novembro de 1954, p. 219]

Dia 10 [de Novembro] - Tem lugar a festa dos caloiros. Os ditos saíram, em procissão cómico-solene, da Politécnica para a Médica, onde foram atroadoramente recebidos e, da Médica, para o Jardim da Cordoaria, a fim de prestar simbólica homenagem à "Virgem Flória".

[Um relato muito mais pormenorizado desta "festa dos caloiros" pode ser lido em Uma "festa dos caloiros" em 1904.]


Instituto Industrial e Comercial, 1905

["Aconteceu há 50 anos...", O Tripeiro (5.ª série), ano XI, Novembro de 1955, p. 223]

Uma comissão constituída pelos académicos Agonia Vieira, Seabra Moura, João Teixeira, Oliveira Santos, Amílcar Monteiro e Correia Lopes, promove grandes festejos de recepção aos caloiros do Instituto Industrial e Comercial do Porto, do programa dos quais se destacaram, pela sua comicidade e pitoresco, os números do cortejo da caloirada (bebés com babadores, cueiros e fraldas) e o do enterro da última reforma daquele estabelecimento de ensino.
Fez também sucesso o número único “O Caloiro”, profusamente vendido a favor do fundo de Assistência da Associação Académica.


Academia Politécnica, 1908

["Aconteceu há 50 anos...", O Tripeiro (5.ª série), ano XIV, Novembro de 1958, p. 217]

Dia 7 [de Novembro] - Realiza-se a festa dos caloiros da Politécnica com uma hilariante procissão em que os mesmos, com grotescos trajes de papel azul e branco, foram obrigados a dar a volta à cidade atrás de um carro de mão com um cómico painel alusivo à cerimónia. Abria o préstito um reboludo “bebé” de chupeta, com um cartaz em que se liam os seguintes versos:

            Ó mocidade heróica e bela,
            Que é da bravura, da alegria?
            Chupas baixeza, hipocrisia,
            Fartas a sórdida goela
            em
biberons de sacristia!

        Legião, Legião, Legião,
        Legião que se vai formar!
        Chupada está a barriga,
        Legião já quer trincar!


 A função terminou no átrio do edifício da Escola com alguns cómicos discursos e com tudo a cantar, com letra adaptada à borga, o Hino da Bandeira.




[1] Não se leia a palavra "veterano" com o significado actual. Provavelmente aplicar-se-ia a qualquer estudante que já não fosse caloiro ("doutor", dir-se-ia hoje). Em Coimbra, no início do século XIX, era veterano quem tivesse terminado o primeiro ano (com aprovação); e nos anos 60 do mesmo século, eram veteranos os alunos do 4.º e 5.º anos (Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra, 1537-1990, Lisboa: Rei dos Livros, 1990, p. 470).

[2] Já não é muito habitual usar a palavra com este sentido, mas "desfrutar" pode significar "zombar de" (Candido de Figueiredo, Nôvo Diccionário da Língua Portuguêsa, 1899), "gozar, troçar" (Dicionário da Porto Editora).

terça-feira, 6 de julho de 2021

Um «guitarrista exímio» esquecido: Aires Pinto Ribeiro


No seu texto memorialístico Carlos Leal «O Rouxinol do Ave», Amândio Marques enumera como guitarristas dos seus tempos de estudante no Porto «Aires Pinto Ribeiro, guitarrista exímio, Ernesto Brandão, Cícero de Azevedo, Manuel Pereira Leite e, dos mais modestos, o autor desta recordação». A sua auto-caracterização como «dos mais modestos» entende-se facilmente como modéstia retórica. Mas o realce a Aires Pinto Ribeiro, «guitarrista exímio», levanta as questões de saber quem era, e porque mereceu essa menção diferenciada.
Uma possível explicação parcial tem a ver com a diferença de idades entre Aires Pinto Ribeiro e Amândio Marques - uma diferença de quatro anos que é muito relevante se nos concentrarmos na faixa etária dos 15-24 anos. Pinto Ribeiro nasceu em 1899 e entrou para a Universidade do Porto em 1917, tendo ido para Moçambique em 1925; Amândio Marques nasceu em 1903 e teve intensa atividade como guitarrista no Porto enquanto ainda aluno do Liceu Rodrigues de Freitas, quando Aires Pinto Ribeiro já era estudante universitário. Não custa imaginar uma relação mentor/discípulo entre os dois, que teria ficado na memória de Amândio Marques, sem possibilidade de evolução para uma relação mais igualitária devido à ausência de Pinto Ribeiro a partir de 1925.
No entanto, há algo mais: alguns temas de Aires Pinto Ribeiro foram gravados no final dos anos 1920 por Amândio Marques, por Pereira Leite e, num caso, pelo excelente guitarrista não-académico António Coelho, conhecido como Barbeirinho (sobre os Barbeirinhos, v. Sobre os guitarristas "Barbeirinhos", do Porto). Se as gravações por estudantes mais novos parecem naturais, a gravação pelo Barbeirinho sugere uma reputação mais alargada de bom guitarrista, e provavelmente merecida.

Vejamos então as gravações de temas de Aires Pinto Ribeiro disponíveis no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado.

Capricho
gravações disponíveis em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=capricho
- versão de Amândio Marques (guitarra), acompanhado por Francisco Fernandes (2.ª guitarra) e José Pais da Silva (viola);
- versão do Trio de Guitarras e Viola, composto por António Coelho (Barbeirinho), António Martins e Augusto Nogueira.

Fado em dó sustenido menor
- versão de Amândio Marques (guitarra), acompanhado por Francisco Fernandes (2.ª guitarra) e José Pais da Silva (viola); disponível em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=do+sustenido+menor;
- versão de Manuel R. Pereira Leite (guitarra), acompanhado por José Taveira (viola); disponível em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=Pinto+Ribeiro (primeira faixa, identificada erradamente como «fá sustenido menor»).

Fado em fá sustenido menor
- versão de Manuel R. Pereira Leite (guitarra), acompanhado por José Taveira (viola); disponível em https://arquivosonoro.museudofado.pt/repertorios?search=Pinto+Ribeiro (segunda faixa).

Sobre a vida de Aires Pinto Ribeiro, a fonte principal é uma biografia/elogio póstumo, com o título Dr. Aires Pinto Ribeiro, da autoria do Brigadeiro Vasco da Gama Fernandes e publicada em 1960 por Sopime Edições. Seguem-se os três primeiros parágrafos desse texto, que são os que mais nos interessam aqui:

«Nasceu o Dr. Aires Pinto Ribeiro no lugar de Vila Nova, freguesia de S. Cipriano, concelho de Resende, às quatro horas da manhã do dia 12 do mês de Setembro de 1899. Foram seus pais Francisco Pinto Ribeiro e D. Sílvia Augusta, de profissão comerciantes.
Decorreu a sua meninice na aldeia natal, entre a contemplação dos verdes horizontes, os estudos primários e o cultivo incipiente da música a que era naturalmente inclinado. Aos 9 anos, o orgulho paterno levou-o a participar numa sessão pública, dedilhando, com significativo agrado, uma viola.
Vieram depois o liceu e a Faculdade de Medicina cursados no Porto. Dele se pode dizer, adaptando uma frase coimbrã, que não faz dano a música aos doutores. Mantendo-se estudante sempre aplicado, deixou fama a sua guitarra, gemendo pelas ruelas do velho burgo, em serenatas que ainda recordam com saudade os velhos companheiros das noitadas boémias, que ficaram famosas na academia portuense.»

Podemos acrescentar, com base no Anuário da FCUP de 1914-15 a 1917-18, que Aires Pinto Ribeiro se inscreveu no curso FQN (preparatório para Medicina) em 1917-18. O Anuário da FMUP de 1919-20 a 1926-27 diz-nos que se formou em 1923, informação complementada pelo Brigadeiro Vasco da Gama Fernandes: «a sua formatura concluiu-se no dia 25 de Novembro de 1923, com a honrosa classificação de 16 valores».
Dois pormenores: na digressão de maio de 1922 do Orfeão Académico do Porto (e também da Tuna) a Espanha, os espetáculos terminavam com «Guitarradas e Fados pelos estudantes Aires Pinto Ribeiro, Aurélio Fernandes, Ernesto Cardoso e Viamonte» (Programa das festas a realizar em Espanha); no seu último ano na Universidade do Porto, Aires Pinto Ribeiro foi eleito para o Conselho Fiscal da Associação dos Estudantes do Porto (Porto Académico, 12/03/1923, p. 3).
[24/05/2023, mais duas referências: numa récita do Orfeão Académico em Vila do Conde em 1923, «Aires, o guitarrista já agora consagrado, arrebatou o público» (Porto Académico, 07/05/1923, p. 3); no ano seguinte, já formado, ainda participou pelo menos num espectáculo da Tuna em Viana: «os fados pelos Drs. Aires e Aurelio Fernandes e por Taveira e Leal fizeram vibrar intensamente numa emoção forte a todos os que tiveram o prazer grande de ouvi-los» (Porto Académico, 05/05/1924, p. 3).]
Depois de cursar a Escola de Medicina Tropical (Lisboa), partiu para Moçambique, aonde chegou em 30 de março de 1925. Fez boa parte da sua carreira em Moçambique, como médico e, a partir de 1942, diretor dos Serviços de Saúde da colónia. Parece ter prestado grande atenção à população nativa (pelo menos para os padrões da época), em particular criando «postos sanitários móveis», com enfermeiros nativos, de forma a chegar às povoações rurais. Em 1948 foi transferido para Macau, também como director dos Serviços de Saúde locais. Em 1950 foi nomeado vice-presidente do Conselho do Governo de Macau, tendo ficado encarregado do Governo por alguns meses em 1951 (sobre alguns momentos da sua estada em Macau, v. https://nenotavaiconta.wordpress.com/tag/aires-pinto-ribeiro/). Deve ter voltado para Portugal (Lisboa) em 1954, quando se tornou Inspetor Superior dos Serviços de Saúde do Ultramar. Estando doente já há vários anos, morreu em 4 de março de 1960, em Lisboa.
(Fotografia retirada do livro do Brigadeiro Vasco da Gama Fernandes, Dr. Aires Pinto Ribeiro, Sopime Edições, 1960)

Ao longo dos anos em Moçambique e Macau passou temporadas de férias (ou de repouso por motivos de saúde) em Resende e no Porto, mas não há indícios de que tenha mantido o cultivo da guitarra.

Entre 1926 e 1930 houve uma grande vaga de gravações comerciais de música portuguesa, incluindo fados de Coimbra e incluindo músicos do meio académico portuense (v. Gravações de estudantes do Porto dos anos 1920 no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado). Ausente em Moçambique, Aires Pinto Ribeiro falhou essa vaga de gravações. Se Amândio Marques, que gravou e escreveu no Porto Académico de 1962, foi caracterizado por Anjos de Carvalho e António Nunes como «[em 2006] um guitarrista totalmente esquecido», que dizer de Aires Pinto Ribeiro? Ficam três das suas composições, gravadas por outros, para recordarmos um guitarrista célebre na Academia do Porto do seu tempo.