quarta-feira, 28 de abril de 2010

Académicos do Porto de capa e batina em 1890


Capa da pauta do "pasa-calle" Amor da Pátria, "brinde aos académicos do Porto". Deve datar de 1890, o ano em que se deu a crise do Ultimatum. O medalhão em que os académicos do Porto aparecem de capa e batina (com gorro, capa traçada à tricana e ainda batina fechada sem lapelas) é a imagem mais antiga que conheço de estudantes do Porto com traje académico.
(O "movimento patriótico Luso-Britânico" aqui aludido seria antes um movimento patriótico Luso e anti-Britânico, como se pode imaginar e se comprova por uma quadra de C. Lagôa que aparece no interior e que se refere a um "ódio tamanho [...] por essa astuta, hipócrita Inglaterra".)

"A Mocidade de Hoje"
A introdução no Porto de capa e batina.

[José Pinto de Queiroz Magalhães, Capa e Batina, n.º 1 (20/2/1930), págs. 1-2.]


«Recordar é viver».

Seja-me, pois, lícito evocar a lembrança, para mim saudosa, dum pequenino hebdomadário que se publicou na cidade do Porto no ano de 1883, a que o brilhante escritor António de Lemos, seu antigo colaborador, se referiu já há tempos no jornal «O Tripeiro» e mais recentemente no «Mundo» os ilustres escritores Albino Forjaz de Sampaio e o Dr. João Barreira, hebdomadário do qual foram redactores o signatário destas mal alinhavadas linhas e José Carlos Ehrhardt, hoje, depois de longos anos de labuta médica, facultativo aposentado da Câmara de Sertã.

Era este um jornal académico, que tinha como redacção um modesto quarto de estudante, alcandorado no 2.º andar, frente, do prédio n.º 137 da rua dos Caldeireiros, onde a mocidade académica desse tempo se reunia, numa ânsia fremente de liberdade, disposta a lutar por todas as ideias generosas, num adorável convívio de quasi irmãos.

Era de lá que aos domingos saía para os seus numerosos assinantes, com pontualidade britânica, pelo braço do seu entregador, «A Mocidade de Hoje».

De entre os periódicos académicos que nesta cidade do Porto viram a luz da publicidade por aquele tempo, e não poucos foram eles, recordando-me ainda com enternecida saudade de «A Ideia» de António Ferreira Neves Júnio, «O Jornal de Calíope» de Francisco Xavier de Sousa Pinto Leitão, «A Pérola» de António Rigaud Nogueira, «O Intermezzo» de Eduardo Artayett, «A Alma Nova» de Aureliano Cirne, etc., logrou «A Mocidade de Hoje» ser o que teve mais longa e próspera existência, chegando a publicar-se 32 números que dentro em breve se esgotaram por completo, constituindo por isso hoje esta publicação para os bibliófilos uma colecção rara e ipso facto de apreço.

Teve o aludido periódico a colaboração de brilhantes penas de reputação já feita, que muito concorreram para o prestigiar, tais como o Dr. Júlio de Matos, Dr. José Leite de Vasconcelos, Dr. Alves da Veiga, Jacob Bensabat, Madureira de Vasconcelos, Dr. Artur Cardoso Pereira, Dr. Aureliano Cirne, D. Clorinda de Macedo, etc., constituindo simultaneamente o escrínio onde ficaram arquivadas as primeiras produções de nóveis poetas e prosadores de fino quilate, parte dos quais já hoje são extintos, ocupando os que felizmente ainda vivem, lugares de destaque no seio da família portuguesa.

Entre os primeiros, seja-me permitido proclamar os nomes indelevelmente gravados no coração de todos que os conheceram de António Nobre, Eduardo Coimbra, José de Oliveira Macedo, Henrique José Martins Ferreira, João Zagalo Ilharco, Heliodoro Augusto Salgado, Augusto Geraldes de Mesquita (Gusanto), Guilherme Braga, filho, Hamilton de Araújo, Alexandre Braga, Eduardo Arteyett, Joaquim de Lemos, Dr. Adolfo Arteyett e tantos outros espíritos cintilantes duma élite intelectual que marcou; entre os segundos, o Dr. Augusto Nobre, ilustre professor e ex-reitor da Universidade do Porto, o Dr. José Leite de Vasconcelos, sábio professor da Faculdade de Letras de Lisboa, eminente filólogo e director do museu etnológico português, o Dr. Artur Cardoso Pereira, distinto médico-analista do Mercado Central de Produtos Agrícolas e abalizado professor da Universidade de Lisboa, o Dr. Bernardo Lucas, António de Lemos, Artur Mendes de Magalhães Ramalho, Alberto Baltar (Sereno Hírcio) e muitos mais, que ora me não ocorrem.

Pois foi neste mesmo quarto de estudante e redacção de «A Mocidade de Hoje» que a mesma geração de imberbes moços, como lhe chamou Raúl Sampaio, passados 4 anos realizou as reuniões preparatórias para a substituição das irrisórias casacas por um uniforme académico mais consentâneo com o espírito moderno, nos actos a realizar.

Ali apareceram vários modelos de uniformes com desenhos do ilustre pintor visiense José de Almeida e Silva, então aluno da Academia de Belas-Artes e redactor do «Charivari», optando-se alfim pela capa e batina, em virtude das tradições que andavam ligadas.

Depois de devidamente aprovada pelo Conselho da Escola Médica-Cirúrgica, onde a defendeu com entrain o célebre Urbino de Freitas, foi enfim esta autorizada, embora apenas facultativamente, sendo pela primeira vez usada no ano de 1889 pelos alunos da Escola Médica-Cirúrgica do Porto, sendo os estudantes do 3º ano médico dessa referida data quem, para dar o exemplo, se antecipou a romper com o preconceito citadino, envergando pela primeira vez no Porto, roçando pelo escândalo, o tradicional uniforme académico da velha universidade coimbrã.

Entre esses terceiranistas reformistas, contam-se José de Oliveira Serrão de Azevedo, Aníbal Barbosa de Pinho Lousada, Scipião José de Carvalho, José Jorge Pereira, Francisco da Silva Garcia, João Leite de Castro, Francisco Xavier Couto de Amorim Novais e o autor desta pequenina memória - sem dúvida um dos mais entusiastas apóstolos de tal ideia.

José Pinto de Queiroz Magalhães
Médico e Professor da Escola Normal Primária do Porto.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Os académicos do meu tempo
(a propósito do aniversário da Academia Politécnica)

[Alberto de Aguiar, Porto Académico, n.º único de 1937, págs. 31-32]


Solicitaram a minha participação neste número único do Porto Académico, no louvável intuito de colher elementos evocadores de vibratilidade académica da minha geração quase a meio termo do centenário que este número único comemora.

Devia furtar-me a tal colaboração, tão fracas e imprecisas as minhas reminiscências desse período, tão pouco me envolvi, por feitio, educação e meio em que decorreu a minha mocidade, nas manifestações académicas do meu tempo, embora batidas e agitadas por movimentos grandiosos e de repercussão formidável e profundamente modificadora da vida social e política da minha Pátria – como o do Ultimatum e a revolução do 31 de Janeiro, sua inevitável consequência.

Estes movimentos nortearam e definiram sem dúvida os meus ideais e convicções políticas, como a dos meus contemporâneos: a Academia do meu tempo era convicta e entusiasticamente republicana, sob o impulso duma fé ardente nos destinos gloriosos da Pátria, mas a sua intervenção, mais teórica do que prática, mais de reacção do que de acção, era essencialmente doutrinária e evolutiva.

E a minha então, absolutamente apagada, embora tão enraizada, ou mais, do que a dos mais sinceros crentes (e por isso talvez me alcunhassem de velhinha), não justificaria uma reminiscência a que eu não posso dar o calor e o relevo de participante activo.

Mas a vida académica não foi só isso e eu acedo à solicitação que me fizeram e porque ma fizeram, considerando um dever lavrar o meu depoimento, por mínimo e insignificante que seja, confiado em que outros, muito melhor e com mais entusiasmo, farão reviver uma época que gloriosa e agitada para tantos é para mim profundamente saudosa, pelas recordações de camaradagem e de convívio académico que elas evocam.

Estava eu no meu 2.º ano médico quando se desencadeou, em 1889[1], o chamado movimento do Ultimatum que nascido gloriosamente na Academia do Porto rápido alastrou pelas demais Academias, numa onda de brio, de exaltação e de redenção.

Iniciada pelos académicos maiorais dos últimos anos dos cursos e dirigido por um quintanista de medicina, o Dr. Reis Santos[2], vincou-se no meu, como no espírito da minha geração, a admiração profunda por quem tão enérgica, disciplinada e inteligentemente dirigiu e orientou esse movimento até o entregar à alta personalidade de Antero de Quental.

Lembro-me nitidamente da elevada consideração, respeito e acatamento com que Reis Santos era acolhido na Academia que, mercê dele, se elevou no conceito da nação como força disciplinadora, nobre, progressiva e persistente, como até então não fora nenhuma outra manifestação académica.


Foi um dos períodos áureos da Academia, cheio de elevação, nobreza e sequência: não teve, como muitos outros movimentos académicos, a fugacidade duma explosão que tanto menos dura quanto mais intensa nasce e mais rápido deflagra, mas a persistência duma reacção que continuamente exotérmica, só se extingue quando terminada a causa que a provocou: iniciada em 1889 propaga-se até 31 de Janeiro de 1891, para se extinguir no movimento redentor de 5 de Outubro de 1910.

Recordo com admiração num misto de saudade e fé patriótica a acção de Reis Santos sempre na brecha, activo, firme e progressivo e associo-lhe os nomes de tantos outros, como o de Artur Vaz Pereira, o académico fogoso que com o verbo ardente, inflamado e fluente mantinha o fogo sagrado das reuniões académicas verberando a inércia e a covardia daqueles que, conforme ele dizia, não tinham nervos mas tripas de viola, nem sangue, mas capilé dessorado, de Scipião José de Carvalho que continuamente alegre e de bem e humorada eloquência, aproveitava todas as oportunidades para animar o movimento, aligeirando-lhe ou solucionando-lhe as responsabilidades mais graves, de Ricardo Nogueira Souto, um vencido da vida, que na placidez e ponderação do seu temperamento foi um esplêndido auxiliar e secretário de Reis Santos.

E a par destes ocorrem-me, neste perpassar de reminiscência evocadora, os nomes de Fernando de Almeida, José Guedes Júnior, José Vicente de Araújo, e de Castro Soares, o condiscípulo querido que pondunoroso, correcto, digno e aprumado repudiou formalizado em reprimenda elevada e castiça – ou ele não fora alcunhado de recta-pronúncia – a brincadeira duns camaradas estúrdios que pretendiam envolvê-lo, ao engano, em atitudes enérgicas que, diziam, o movimento exigia: caído em si, prega-lhes um tremendo sermão, que com coisas sérias não se brinca.[3]

Mas agora reparo que sem querer, nem ser minha intenção, pelas razões que expus ia resvalando no perigoso pendor de invadir domínios que não me pertencem nem percorri, quando tantos outros, ainda em plena actividade o podem pormenorizar com minúcias inéditas que bem o merece esse grandioso e simpático movimento académico, expressão espontânea da nossa dignidade ofendida.

Que outros o façam com o devido conhecimento de causas senão tanto para salientar a grandeza dum movimento cuja finalidade patriótica está bem evidenciada, pelo menos para tirar do esquecimento muitos dos valores académicos que mais o abrilhantaram, imprimindo-lhe fecundas energias de sucesso.


Passo sobre os acontecimentos de 31 de Janeiro em que a Academia não interveio directamente, muito embora neles participassem, individualmente, alguns estudantes, meus condiscípulos e contemporâneos, nomeadamente aspirantes de marinha, para me referir, entre muitas outras brincadeiras de estudantes, a duas formidáveis charges, reveladoras da exuberância, da vida, espírito crítico, justiça, sentimento e correcção, características da mocidade académica de todos os tempos, mas em que a minha geração me pareceu mais fértil, talvez porque melhor pude apreciar as suas manifestações.

A primeira refere-se a uma graciosa paródia de doutoramento, realizada no final do ano escolar de 1890-1891: teve como protagonista um antigo empregado da Imprensa Portuguesa, o falecido António Augusto de Sousa Vieira, homem de toda a confiança do saudoso Anselmo de Morais seu director e a quem ele confiara a ingrata e delicada missão de acompanhar às aulas as suas filhas Aurélia e Laurinda Morais Sarmento que foram, com D. Maria Tavares Pais Moreira (do mesmo tempo, mas que defendeu tese um ano depois), as primeiras senhoras que no Porto conquistaram o seu diploma de Medicina e Cirurgia, passando pela antiga Escola Médico-Cirúrgica, onde igualmente me formei um ano após elas.

Esta vigilância, produto da época e da novidade (hoje ridícula pela banalidade), aliada à natural comoção que as simpáticas académicas despertaram no meio dos seus condiscípulos, foi desempenhada com todo o escrúpulo pelo guardião, que os rapazes respeitaram embora o alvejassem com naturais piadas e alcunhas inofensivas.

O bondoso Vieira cumpriu a preceito as suas funções: acompanhava às aulas as filhas do seu amigo e director, assistia às respectivas lições, silencioso, resigando e cônscio do seu papel e retirava-se com elas indiferente às inofensivas chalaças, piadas ou alcunhas com que os mais irrequietos condimentavam, de longe, sempre a meia voz e correctos, a evangélica paciência de tão fiel servidor.

Assim se passaram os 5 anos do curso médico, e no final, a ideia de diplomar em sessão magna quem com tanta assiduidade, zelo e “nula competência” assistira a todas as lições sem faltas, salvo as das suas pupilas, surgiu espontaneamente, rápido tomou vulto, alastrou e concretizou-se, dias volvidos, na grandiosa manifestação de homenagem a que o atingido assistiu com enorme aprazimento e contentamento, só percebendo no final que era o protagonista visado naquela memorável Assembleia.

O acto passou-se no Teatro Anatómico, para tal profusamente ornamentado e engalanado pelos rapazes, tomando o inocente homenageado o seu lugar de honra nas doutorais, com a assistência dos novos doutores, representantes das várias Universidades e Academias do país e do estrangeiro, das autoridade e figuras representativas que, em grande número, intensa alegria e satisfação, colaboraram na sessão a que davam o brilho da sua presença, entre as desafinações duma charanga académica, adrede preparada para a cerimónia.

Famosos os vários discursos pronunciados, entre os quais um em latim macarrónico, no género do palito métrico, pronunciado, suponho eu, por Scipião de Carvalho, o endiabrado boémio cujas graciosas partidas académicas mereciam relato especial e que com o meu condiscípulo José Guedes, ainda hoje apaixonado cultor das sentenças latinas com que abrilhanta a sua conversa animada, discípulos do Pe. António Pereira no afamado Colégio dos Roseirais que este dirigiu em Lamego.

Os esfusiantes comentários da assembleia, entusiástica, ruidosa e alegre, os aplausos, as gargalhadas espontâneas e sonoras da assistência, as notas estrídulas e vibrantes da charanga sublinhando as várias peripécias da cerimónia, as manifestações álacres da mocidade atingem o rubro quando é feita a entrega do diploma honorífico, com todas as suas fitas, selos e predicados ao novo e original doutor que só então atinge o objectivo de tão movimentada e aparatosa sessão.

Inolvidável o abraço final dos padrinhos: ela dama distinta, paramentada a rigor, na pitoresca viela dos Gatos, fronteiriça à Escola; ele, engalanado com todas as suas condecorações, pomposo e aprumado, ostentando brilhante, alva e luzidia a pera a parodiar a do seu afilhado.

No auge da comoção, ao cingir o paraninfo no simbólico abraço de Minerva, a madrinha trinca, mastiga e engole com delírio metade da pera do padrinho, que por sinal era de doce, bem disfarçados por entre as suíças os fios que a mantinham no seu lugar próprio.

Tudo isto não é mais que uma pálida e desbotada reminiscência do muito que presenciei e do que se passou nessa grandiosa e memorável sessão e do pouco e confuso que a minha memória retém, a cerca de meio século de distância, dum acto em que à originalidade do conceito se aliava uma opulência de pormenores e de facécias, no propósito sadio, alegre e inofensivo de focar um acontecimento único na história jocosa da Academia Portuense.

Tão correcta foi e tão graciosa que o novo e original doutorado, a princípio indiferente, embora interessado, se considerou lisonjeado e nada agastado com a elevada honra académica prestada à sua forçada assiduidade escolar.

Sirvam estas despretenciosas evocações de traço espiritual de união entre todos aqueles, e bastantes ainda são, que viveram esse inesquecido e alegre momento da sua vida académica e dela conservam perduráveis e gratíssimas recordações.


A outra do mesmo género, pomposa, mas bem mais cáustica homenagem, me foi dado assistir em 1902 na qualidade de incógnito, como substituto de medicina que era então.

Foi a formidável “charge” ao apregoado específico contra a tuberculose – “Badiana fosfatada de Sued” (Deus) – que os académicos crismaram ironicamente de Badiana sulfatada de uva preta, poderoso microbicida do médico Quinterra, conselheiro da Majestade, facultativo desonorário do Hospital de Santo António, etc., etc. e de que os promotores distribuiam pela assistência pequenos frascos com as indicações: Para uso interno às camadas. Preço segundo as praxes.

Esta contundente rubrica motivou o aparecimento dum poemeto A Banana da Suécia da autoria do meu condiscípulo saudoso, Dr. Manuel Augusto de Queiroz e Castro, poeta repentista, satírico e irónico, cujo espírito e talento, em plena ascensão, a morte abateu sob a forma duma infecção profissional aguda, roubando o infeliz moço ao carinho dos seus e à camaradagem dos condiscípulos e amigos que o estimavam.

Que a sua memória e a do “Dr. Lúcio Quinterra” por cuja boca fala, me perdoem a transcrição de alguns dos versos desse poemeto, alusivos ao custo da mercadoria, ao seu vistoso e sugestivo rótulo
Eu sou o hemorroidário D. Fiasco
Autor daquela sórdida mixórdia
Da qual, por obra de misericórdia
Estou vendendo a três mil reis o frasco!

Mas se for encomenda de espavento
Três, quatro frascos, cinco ou melhor seis
Então já a coisa, com abatimento
Pode ficar aí por dois mil reis!...

Agora quem quiser maior’s porções
Oito, dez frascos, doze ou cois assim,
Cada litro da choldra, quanto a mim,
Pode custar, o muito, dez tostões!!!

E se enfim apechinche for tão boa
Que me despeje um lote da fazenda,
Ficará cada pote da encomenda,
O muito, a arrebentar, por uma coroa!!!

...

Mas eu não durmo!! Para dar um corte
Da intrujice voraz no imundo tasco,
A cores fiz gravar em cada frasco
A imagem da Badiana em frente à Morte!

A Badiana, olímpica serena
Parece estar dizendo à morte crua,
– Nem mais um passo!!... Para trás, hiena!
Que vens cá tu fazer?!... olho da rua!!!

E a morte embaçada e confundida,
Assim a modos de quem está a perder,
Torcendo a negra boca, enraivecida
Parece resmungar... Vai-te coser!

...

Estão vivos, de saúde e em plena pujança de actividade muitos dos colaboradores dessa chistosa e cauterizante manifestação académica que o poemeto do meu querido condiscípulo sintetiza nos seguintes versos:
Em todo o caso, a lusa mocidade,
Por amor da justiça e não da esmola,
Mostrou ainda há pouco numa Escola
Tudo quanto me deve a Humanidade!

Ò que festa de truz! Que apoteose!
Como jamais a houve nas Espanhas!
Sua lembrança ainda me recose
E me baralha as húmidas entranhas!

Das mais longínquas terras atraídos,
Vieram, pelo cheiro do meu nome,
A par de vivos sábios conhecidos,
Outros muitos que a terra já consome!

Gente da Maia, do Hindustão, da Grécia,
Da Albânia, do Saará, de Mesão Frio
Desembarcaram no Porto, toda sécia,
Para honrar o sobrinho de meu brio!!?

...

A eles melhor do que a outrem convém fazer reviver algumas das peripécias mais famosas, em que o alvejado, considerado à rebelia, foi representado por um jumento coroado de louros.

Na Faculdade de Medicina em cujo teatro anatómico se desenrolou a hilariante apoteose, existem, no seu Museu Histórico, peças evocadoras da graciosa “charge”, nomeadamente os trágicos painéis com as descrições dos horríveis bichinhos da tuberculose e esse associado, a Badiana.

Limito-me pois aos excertos feitos e à reprodução do grupo cénico[4] em que o leitor facilmente identificará os componentes, como clínicos consagrados, sublinhando com um sentimento de saudade os desaparecidos, talvez sob o olhar fatídico da morte, convidada em recordação das vítimas imoladas à Badiana.


Por estes dois escorços bem se poderá aquilatar das manifestações académicas – cortejos, festas da pasta, encerramento de aulas, paródias, etc., – em que se expandia o espírito irrequieto, audaz e alegre da mocidade académica do meu tempo.

Se lhe juntarmos algumas zaragatas célebres como a do franquismo, récitas teatrais entre as quais “Os Filhos de Minerva” e “O Auto das três barcas” do nosso saudoso e sempre relembrado colega Dr. Campos Monteiro, manifestações várias de arte, como música, poesia, caricaturas, etc. teremos uma ideia do grau de actividade, cultura e sentimento dos académicos da minha geração e de quanto contribuiram para manter, perpetuar e honrar as tradições de galhardia da mocidade estudiosa superior de todos os tempos.

Destas várias exteriorizações do potencial académico em que todos os cursos da minha geração comparticiparam já como figurantes, já como manifestantes, espectadores animados ou ouvintes chalaceadores, nasceu essa estreita e viva camaradagem que a todos nos une e que afirmada em reuniões periódicas mais ou menos espaçadas mas sempre animadas, esfusiantes de graça e evocadoras de pequeninos nadas da vida académica relembrados e exaltados à categoria de acontecimentos notáveis, constitui uma das mais gratas recordações da nossa mocidade e um momento ansiosamente esperado para aliviar as agruras da nossa profissão.

O meu curso (1892) tem sido fiel a esta tradição e desde a primeira convocação (autoria de Queiroz e Castro):
Foi num magno concílio resolvido
Pelos melros portuenses cá do curso
Que opíparo jantar seja roído
Cá pela tropa em máximo concurso

...

procura manter esperto e vivo o fogo sagrado destas encantadoras reuniões, embelezando-as e aureolando-as com os possíveis actos de benemerência a favor das famílias desprotegidas de condiscípulos falecidos.

Infelizmente a matéria prima destas reuniões vai rareando e prejudicando com mágoa a sua encantadora finalidade e ao terminar este singelo relato das minhas reminiscências académicas, não devo deixar de me referir ao último desaparecido após a reunião em 25 de Maio transacto.

Foi o Dr. Aguiar Cardoso que deve ser rememorado entre os mais brilhantes académicos da minha geração e do meu curso, e que só por si o honra e enche de prestígio e solidariedade, pois que académico cheio de originalidade e de bom senso – razão porque o cognominava de filósofo – foi um distinto e laureado cultor e compositor musical, um clínico eminente, polemista invulnerável, arqueólogo activo, apaixonado e sabedor na valorização da sua terra, terras de Santa Maria e seu famoso Castelo, um amigo e paladino dos pobres por cuja assistência se bateu com denodo, e acima de tudo, para nós, um camarada amigo, apreciador entusiasta das nossas reuniões e do nosso convívio.

Focando-o rapidamente, neste momento, sintetizo os valores da minha geração em um dos seus lídimos e superiores representantes, o último falecido[5] e saudosamente rememorado – o Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso.

Porto, 22 de Março de 1937

ALBERTO DE AGUIAR





[1] De facto a crise do Ultimatum só começou em Janeiro de 1890. Deve haver confusão com o ano lectivo 1889/90.

[2] Refira-se que Reis Santos foi também regente da Tuna (Porto Académico, n.º único de 1937, pág. 33).

[3] [Nota original:] Na revisão deste artigo em 31 de Março fui dolorosamente surpreendido pela notícia brutal do falecimento de Castro Soares o condiscípulo querido que deu brado na Academia pela energia, nobreza e ímaculabilidade do seu carácter e que armado na vida pública com tais virtudes conseguiu a reforçada indepêndencia concelhia de Espinho, a admiração respeito e alta consideração dos seus conterrâneos e a estima e a gratidão dos seus doentes pela muita bondade, dedicação e saber do seu culto profissional.

[4] A versão original deste texto vem acompanhada de uma fotografia, que aparece também acima neste blogue, na primeira imagem da entrada O "Dr. Quinterra".

[5] [Nota original:] Já não é, pois posteriormente, como aludi em nota anterior, Castro Soares, outro grande e belo espírito, transpôs as fronteiras da Eternidade, talvez a reconciliar-se com Aguiar Cardoso neutralizando a repulsa resultante do choque de dois sonhos animado do mesmo mais alto potencial de simpático jornalismo.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O edifício da Escola Médica


[Bilhete postal dos últimos tempos da Monarquia (o meu exemplar tem uma mensagem datada de 23/9/1910), da série Estrela Vermelha, de Carlos Pereira Cardoso.]

Durante perto de 50 anos, a Escola Médico-Cirúrgica do Porto (fundada em 1836) funcionou na ala nascente-sul do Hospital de Santo António (onde tinha já funcionado a sua antecessora, a Régia Escola de Cirurgia do Porto, fundada em 1825). Foi só por volta de 1884 que passou para um edifício próprio.

Este edifício foi depois substituído por outro, maior, no mesmo local, onde hoje ainda funciona o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.

terça-feira, 13 de abril de 2010

A Homenagem

[Sá d’Albergaria, O segredo do Eremita, vol. 3, 1902, págs. 38-41, 67-82.
Como já foi dito acerca d'"O Café Lisbonense", O segredo do Eremita é um romance, mas o autor chama-lhe "romance de costumes" e diz no prefácio que "os seus personagens existiram" e "tudo que aí se conta sucedeu" (vol. 1, 1902, págs. 6-7). Sou bastante céptico relativamente à veracidade da estória aqui contada. No entanto, não me parece de todo irrelevante uma estória passada num meio estudantil, apresentada pelo autor como verdadeira – inspirando-se possivelmente em situações e ambientes reais.]


[...] o estudante [Roberto] entrou no Lisbonense seriam oito horas da noite.

- Ora ainda bem! Ainda bem que apareces! - gritaram algumas vozes, saídas de um grupo de rapazes sentados à volta de uma mesa, ao centro da sala.

- Então o que há?

- Há que vamos fazer uma patuscada de mão cheia e é preciso que não faltes.

- Eu afianço-o! Este é dos nossos, não falta! - exclamou o Veiga, na sua voz de stentor. E acrescentou logo: - Ponha para aqui um charuto!

Antes, porém, que Roberto tivesse tempo de lho dar ou de o recusar, já o Veiga lhe introduzia a mão no bolso e se apoderava do charuto.

- Este é rico, este é proprietário... pode bem com a multa... Não é como vocês, seus pelintras, que só fumam cigarros de oito... É dos de trinta e Flor de Creta - continuava, admirando-o, antes de o acender.

- Mas vamos a saber... De que se trata?

- Trata-se de glorificar um poeta, oferecendo-lhe uma ceia.

- Uma ceia?

O Joaquim d’Araújo, com um sorriso meio aberto, meio fechado, que lhe dá à boca o aspecto rugoso de uma rosa de Alexandria, explicou com voz melíflua:

- Sim. Existe aí um poeta assombroso, um poeta piramidal, que se chama o sr. Anastácio Gomes... Ora este poeta queixa-se de que não é suficientemente apreciado o seu estro; e nós resolvemos oferecer-lhe um banquete lauto... isto é... encher-lhe a barriga, coisa de que ele muito precisa em verdade, e por fim entoar-lhe um hino... Já fizemos o cálculo e deita a coisa, com troça e tudo, lá para dez tostões por cabeça... o banquete é de cinquenta talheres; mas o nosso poeta não paga nada.

- Deve ser uma noite cheia! - observou o Paranhos.

- Já se encomendou uma coroa de cascas de alhos para lhe ser oferecida no fim...

- Mas quem é esse Anastácio Gomes?

- É um parvo que faz versos muito engraçados, pelas calinadas monumentais de que os recheia.

- Mas ele em que se ocupa? - insistiu Roberto, cada vez mais interessado em saber quem fosse a vítima daquela brincadeira de rapazes, por suspeitar que o Anastácio Gomes se relacionasse de perto com o primo das Gomes, seu rival e proposto noivo de Camila.

- É um súcio que se emprega no comércio, onde parece que não está mal, mas que tem a mania de ser poeta.

- É do Porto?

- É. Chamam-lhe até o Primo das Gomes, porque está sempre a falar nas suas primas Gomes - umas seresmas que prometeram deixá-lo herdeiro quando morressem...

- Ah! Tenho ouvido falar.

- Mas vamos a saber, podemos contar contigo?

- Talvez... Amanhã darei resposta.

- Não senhor! Há de ser hoje... porque é preciso que tudo fique combinado.

- Pois bem, contem comigo.

- Viva! - bradaram todos os rapazes alegremente.

- Olha que hás de botar discurso, ouviste? - preveniu o Bonga. - Olha que o discurso é obrigado...

- É verdade - afirmou o Joaquim d’Araújo - o poeta também recita... Eu comprometo-me a fazê-lo recitar... Isso vai ser muito bom! [...]

[ Entretanto, Roberto fala a Camila da “homenagem” ]


A ceia tinha sido encomendada no restaurante conhecido pela denominação da D. Ana das ... gordas, em Entre-Paredes.

O avultado seio da proprietária, uma mulher quarentona, mas ainda fresca, tanto quanto o pode ser uma mulher nessa idade, robusta e nutrida, tinha dado ao retaurante e à D. Ana a denominação comum.

Esse restaurante, que já hoje pertence a novo proprietário, conserva ainda agora a antiga denominação; e posto a tabuleta o anuncie aos transeuntes como Restaurante Português, o certo é que o boémio portuense desse tempo não o conhece senão pelo Restaurante da D. Ana das ... gordas.

Omite-se por um resto de amor à decência... escrita, o que a decência falada nas ruas do Porto repete em voz alta.

As reticências não se fizeram para outra coisa, senão para servirem de parra à nudez, às vezes mais que paradisíaca, de certas frases ou fórmulas populares.

Vamos adiante.

É o Restaurante da D. Ana um amplo barracão de madeira, que outrora foi construído para servir de vacaria e que mais tarde foi convertido em restaurante.

À entrada, sob uma ramada, ao ar livre, estão colocadas algumas mesas toscas de madeira que, nas noites calmosas, são preferidas pelos frequentadores.

E no mesmo plano, divididas por frágeis tapamentos de madeira, há duas ou três salas bastante espaçosas, com umas mesas sempre sujas e escassamente iluminadas a gás.

O resto do edifício subdivide-se em quartos reservados, com a sua negra e suja cortina de chita a tapar-lhes a entrada e a vedar das vistas indiscretas o seu velho bico de gás saído da parede, a esclarecer a toalha nojentamente enodoada, estendida sobre a tábua de pinho assente em quatro pernas e pomposamente crismada com o nome de mesa.

Não era em nenhum dos quartos reservados, onde apenas podem estar à vontade duas pessoas - ainda que os bancos indicam lugar para quatro - que havia de ser servida a ceia.

Escolheram os rapazes a sala da entrada, à direita, por ser a mais espaçosa e a mais isolada de todas; e para aí se dirigiram às 10 horas da noite todos os convivas.

O Joaquim d’Araújo, que se encarregara do menu, dava ordem ao criado - um galego grosso e gordo - para que fosse dispondo a mesa, pois que o banquete, às 10 e meia em ponto, devia principiar com os convivas que estivessem.

- A hora marcada era para as 10 - dizia. - Concedemos meia hora de espera. Quem chegar mais tarde entrará na altura em que estiver o banquete.

O Veiga, fazendo sempre muito barulho, intrometia-se nas atribuições do Araújo e dava ordens ao criado.

- Ò Juan! Ò Romão! Ò galego! - berrava ele - E vinho! Vê lá, deita bastante vinho nessa água, ouviste?

- Meus senhores, - disse o Araújo aos convivas já reunidos - proponho que façamos as coisas com a solenidade e respeito devido ao eminente vulto que pretendemos honrar neste banquete. Acho para isso indispensável que se nomeie uma comissão que vá receber à porta e introduza na sala do festim o poeta extraordinário que vem proporcionar-nos a mais bela noite que ainda temos passado desde que somos gente de andar de noite!

- Apoiado! Apoiado! - bradaram várias vozes.

- Vejo com muito prazer - continuou o Araújo, com voz macia, de ronha espirituosa - que sou secundado pelos meus ilustres companheiros neste sentimento de respeito e admiração que nutro pelo favorito das Musas que hoje desce até nós! Proponho, portanto, que a comissão se componha dos senhores...

- Eu quero ser da comissão! - berrou o Zé Veiga. - Eu e o Monstro... Tu queres, ò Monstro?

- Valeu! - respondeu o Monstro, com voz nasal

- Bem! Já há dois... quantos são precisos?

- Pelo menos três... - redarguiu o Joaquim de Araújo - três são da praxe.

- Quem há de ser? - Interrogou o Veiga, circunvagando os olhos pelos circunstantes - Hás-de ser tu, Roberto! - disse ele.

- Eu não, não conheço o poeta, e não desejo atrair sobre a minha humilde individualidade o seu divino olhar... Tenho medo de fazer loucuras sob a irradiação ardente do seu estro inspiradíssimo... Reconhecendo-me pequeno ao lado dele, receio arrancar-lhe a lira das unhas e... partir-lha na cabeça!

- Pode, se quiser, fazer isso no fim... Mas primeiro deixe-lhe encher a barriga... - advertiu o Bonga.

- Que coma à vontade... essa é boa!

- Venha o Queirós Veloso! - intimou o Veiga.

- Pronto! - disse o Veloso - Eu não posso recusar-me a honrar a Besta nacional na figura do mais alto e ilustre poeta que os comunicados a pataco a linha jamais cantaram em suas colunas!

Organizada a comissão, foi ela postar-se à porta.

- Rapazes! - disse o Veiga, voltando à sala - não se arranjará por aí uma campainha?

- Para quê?

- Essa é boa! Quero tê-la na mão para a tocar em sinal de aviso, logo que o poeta dê entrada no templo...

- Essa é boa! - bradaram alguns.

O Veiga continuou:

- Logo que ouçam o primeiro repique, vocês levantem-se... hein? E em chegando à porta da sala repico com mais força... Então vocês, de pé, ou em cima dos bancos, entoam a Maria Cachucha... Valeu?

- Ò diabo! Mas isso será forte!

- Qual forte! - tornou o Veiga. Depois dele cá estar denttro, há-de cantar e dançar enquanto nós comemos... e no fim... come ele!

- Nada; não senhor!... Seriedade, seriedade... - recomendava o Araújo - Nada de ferir a sentimentalidade do poeta a ponto de o fazer chorar...

- Mas ao menos podemos recebê-lo com um hino? - insistiu o Veiga.

- Vocês sabem o coro da taberna do Roberto do Diabo? - inquiriu o Araújo.

- Nada de Roberto... Música portuguesa... Canta-se a Maria da Fonte! - gritou belicosamente o Veiga.

- Voto pela Cachucha! É mais lírica e mais expressiva! - observou um.

- Está dito! Seja a Cachucha! - aprovaram outros.


Enquanto isto se passava no Restaurante, o poeta Anastácio Gomes, prevenido pela carta de Camila, escoava-se surrateiramente do Lisbonense e, cosido com as paredes das casas, procurava o seu domicílio.

- Que grandes pandilhas! - murmurava ele. - Vá lá um homem fiar-se nestes bandidos que não têm talento nenhum e que não suportam que os outros o tenham! [...]


Dez horas e meia dadas e o poeta sem aparecer. Começavam os convivas já todos reunidos a inquietar-se.

- O homem tarda! - disse o Araújo, vindo à porta.

- Assim que ele chegar, ferro-lhe um ponta-pé - bradava o Veiga furioso, - para o ensinar a ser mais delicado para outra vez!

- O melhor - optou o João Novais - é dar princípio ao banquete... E se o homem vier até à sobremesa, come; senão, quando chegarmos ao fim, nomeia-se uma comissão que o vá procurar e que o traga aqui, vivo ou morto, a dar explicações... Não vale a pena deixar arrefecer o bacalhau!

- Sim, vamos ao bacalhau! - clamaram várias vozes.

Sobre a mesa foram postas três enormes travessas de bacalhau cozido com batatas e ovos.

- Vamos, meus senhores! - comandou o Araújo. - Está aberta a sessão... Os cavalheiros que preferirem boroa não têm mais do que prevenir o criado...

- Venha a boroa! - berrou o Bonga. - Quem diabo é que come bacalhau cozido com pão de trigo? Isso não é para mim, transmontano, que não preciso do molete dos tripeiros para ser filho de boa família!

O galego trouxe uma enorme boroa, que os rapazes desfizeram e deglutiram com uma voracidade de corvos sobre animal morto.

- Eia! Isto sim! Isto é que é banquete! - berrava um.

- Pedaço de asno de poeta! - gritava outro - Perder a ocasião de tirar o ventre de misérias! Não apanha outra em toda a sua vida!

- E então o vinho? - exigiu o Veiga - Isto vai a seco?

- É verdade! - clamou o Araújo - Rapaz! Serve o néctar dos deuses a estes senhores!

O galego, atarantado com a vozearia infernal dos estudantes, corria de um lado para o outro, já trazendo um talher, já um guardanapo, e gritando sempre:

- Pronto!

Foi trazido um garrafão de vinho, e as canecas cheias eram prontamente despejadas pela rapaziada.

Os ditos alegres esfusiavam, as gargalhadas estrugiam, e de vez em quando uma voz bradava:

- O pulha do poeta não vem! Mal sabe o que perdeu!


Do bacalhau cozido com batatas passara-se à pescada cozida, à pescada frita, aos bolinhos de bacalhau, a toda essa comezaina indigesta que só o estômago de rapazes pode suportar vitoriosamente numa noite de patuscada.

A esta pândega, pretexto para algumas horas de alegre convívio por pouco dinheiro, chamara o Araújo pomposamente - um banquete.

No fim, quando as travessas vazias davam lugar aos vinhos finos do Armazém da Estrela a dois tostões a garrafa, com os quais vinhos se faziam brindes de valor extraordinário pelo bom humor que os ditava, o Paranhos propôs que uma comissão fosse procurar o poeta e, fazendo-lhe compreender quanto a sua ausência fora notada e sentida, ali o levasse morto ou vivo, afim de ver com seus próprios olhos e ouvir com os seus ouvidos tudo quanto o seu alto génio inspirava de admiração e respeito àquela mocidade ardentemente entusiasta pelos maus versos e pelas boas orelhas.

Muito aplaudido o Paranhos, a cuja cara inimitável o vinho ia dando uma expressão cada vez mais picaresca, nomeou-se a comissão.

- Conservemo-nos em sessão permante, esperando a vinda do poeta... - propôs um.

- Como se disseramos a vinda do Messias! - acrescentou outro.

- Venha o poeta! Urge que o glorifiquemos! - bradaram várias vozes.

- Amigos e companheiros! - berrou o Veiga, que era um dos da comissão - aqui vos juramos solenemente, pelo vinho do Armazém da Estrela que, para o preço, vamos lá que não é má pinga, que não voltaremos aqui sem o poeta ou quem quer que seja que o represente!

E voltando-se para o grupo dos comissionados:

- Vamos!

- Hurra! - bradaram os convivas tocando os copos.


Passado um quarto de hora, o Veiga reentrou na sala e, impondo silêncio com um gesto, falou assim:

- Senhores e companheiros: não tendo podido haver às mãos o poeta Anastácio Gomes, o puro e autêntico Anastácio, em cuja honra esta festa é, eu e os meus colegas, vossos comissionados, tomámos o alvitre de o fazer representar aqui por um indivíduo da sua família e, posto que algum tanto dissimilhante na figura, perfeitamente igual a ele no engenho e arte e talvez mais que ele admirável na grande voz com que soe cantar o vasto poema de seus anelos e de seus amores! Ei-lo!

E apontando para a porta da entrada, apresentou aos circunstantes um magro jumento, em pelo, que, ladeado pelo resto da comissão descoberta e em atitude respeitosa, dava entrada na sala.

- De pé! De pé! - intimou o Veiga com voz de stentor, agitando os braços hercúleos. - De pé e entoemos o hino!

Chegou o burro até á mesa e estacou.

Os estudantes, de pé sobre os tamboretes e empunhado os copos, berraram furiosamente umas coplas que o Araújo havia composto e adaptado à música de um hino antigo que a companhia do Dallot cantava nas Carmelitas.

Fosse pelo efeito das luzes e pelo cheiro do vinho, fosse animado pela gritaria dos estudantes, o certo é que no fim da cantata o asno rompeu num zurro atroador e prolongado.

- Bravo, poeta! Bravo, Anastácio Gomes! - berravam os estudantes todos à uma, batendo as palmas.

E acto contínuo, o Araújo, grave e solene, pegou na coroa de cascas de alhos e aureolou com ela a cabeça do animal, bradando:

- Glória ao burro!

Nova e mais ruidosa gargalhada.

O motim dos estudantes havia atraído às portas da sala os criados do restaurante e os frequentadores curiosos de verem que pagode era aquele. E todos riam a bandeiras despregadas desta extravagância dos endemoinhados rapazes.

De repente um vulto alto, esguio e pálido, sinistramente entrajado de preto, sobrecasaca, chapéu alto amassado em partes e bengala de cana da Índia na mão, entra na sala e, dominando o tumulto, brada com voz cava, roucamente diabólica:

- Eu sou Falstaff!

E sem mais preâmbulos, cavalga o burro, bate-lhe com os calcanhares na barriga, dá-lhe um murro nas orelhas para lhe imprimir direcção e sai.

Era Alfredo Carvalhais, o poeta impecável, o boémio da penumbra, que o acaso levara ali nos caprichos da embriaguez.

A estudantada no auge do entusiasmo, saudou o poeta da Beatrice com aplausos ardentíssimos e vivas prolongados. E vendo-o partir pela porta fora, naquela burlesca atitude de Apolo cavalgando o Pégaso, seguiu atrás dele entoando um hino patriótico.


A patuscada findou na Batalha para não ir findar no Aljube.

domingo, 11 de abril de 2010

O Café Lisbonense

[Sá d’Albergaria, O segredo do Eremita, vol. 3, 1902, págs. 31-35][1]


O Café Lisbonense era [por volta de 1885] o ponto de reunião da estudantada do Porto.

E que bons e alegres espíritos eram muitos desses rapazes [...]. O Zé Veiga, um latagão moreno, com as cores do presunto da sua província - Trás-os-Montes - a dar-lhe à face sempre risonha e alegre o aspecto da força e da saúde.

Alto, espadaúdo, compleição vigorosa de transmontano, falando muito alto, com grande ruído, como se o mundo todo fosse feito para ele e só ele vivesse e falasse nele. Na rua ou no café, à porta da aula ou em casa, ele chamava os amigos de um ao outro extremo da sala ou de um ao outro ponto da rua, com o mesmo metal de voz forte, como se estivesse num deserto. E ao chamamento seguia-se logo o gracejo, o dito espirituoso, como se ninguém mais o ouvisse.

Não via, não conhecia mais ninguém senão as pessoas a quem se dirigia - que eram sempre condiscípulos, amigos ou companheiros de quarto.

- Ò Paranhos! Ò bêbedo, já estás com a turca?

E daí, quatro pernadas de gigante, um amplexo vigoroso dos seus fortes braços musculosos e o pedido formulado numa voz de trovão:

- Ponha para aqui um charuto! Estou depenado.

E charuto aceso e primeiras fumaças tiradas, lá estava ele voltado para outro:

- Ò seu Novais, ò seu malandro, fica intimado para pagar a ceia! Você tem dinheiro, não negue... Venha daí...

E lá agarrava no pobre João Novais, um excelente rapaz, a esse tempo meio médico e meio republicano, e já hoje médico completo e republicano inteiro, e levava-o a pagar a ceia.

O Paranhos, um ratão de bom gosto, que frequentava a Escola Médica por obediência à família e que sabendo que o lente, o Dr. Lebre, era surdo como uma porta, quando este o chamava à lição, levantava-se, começava a gesticular vivamente e a mexer os beiços, sem pronunciar palavra, conservando assim por muito tempo o lente com os olhos arregalados e a mão na orelha em forma de corneta acústica, fazendo esforços sobre-humanos para perceber as palavras que ele não proferia. Ah! o Paranhos! Contavam-se as ratices dele entre os rapazes, e por mais sisudo que fosse ou por mais triste que estivesse, não podia deixar de rir a bom rir.

- Não sabes o que fez hoje o Paranhos na aula? - dizia-se.

- Não, o que foi?

- Levantou-se, dirigiu-se ao Lebre e disse-lhe: “João, quero-te ir aos queixos, e vou esperar-te lá fora... posso ir?”

E o lente, muito sério, persuadido de que ele lhe pedia licença para ir à retrete:

- Pode ir...

- Mas vê lá - replicava o Paranhos, com uma cara impagável - se vês que não aguentas duas solhas calado... esntão não vou!...

- Pode ir! - berrava o lente exasperado pela insistência do pedido.

- Bem, nesse caso vem cá ter.

E saía.

Os estudantes riam, e o Paranhos, impertubável, saía da sala, dizendo:

- Vou-lhe aos queixos... Vocês ouviram que ele deu licença...

Havia o Marcondes, uma bela figura de rapaz, sempre muito janota, muito correcto no porte e no vestuário, mas sem afectação nem desdéns para com os mais modestos ou mais estroinas.

Havia o Bonga, o Monstro - um transmontano, negro e bexigoso, com um grande nariz plantado no meio de um enorme carão, iluminado por dois olhos negros, vivos e bondosos; rindo muito, trocando piadas com os companheiros, que lhe chamavam alternadamente o Bonga e o Monstro.

O Queirós Veloso, com o seu olhar doce, aveludado, grande suavidade na voz e que parece a música ao som da qual dança o sorriso que lhe acompanha as palavras.

A estes boémios de escola, juntavam-se os boémios do jornalismo, na literatura.
[Seguem-se vários nomes, entre os quais Sampaio Bruno, e o seguinte, que toma parte no relato da "Homenagem".]
Joaquim d’Araújo que já então preparava a Lira íntima.




[1] O segredo do Eremita é um romance, mas o autor chama-lhe "romance de costumes" e diz no prefácio que "os seus personagens existiram" e "tudo que aí se conta sucedeu" (vol. 1, 1902, págs. 6-7). Esta passagem refere pelo menos quatro personagens históricas: o dr. João Dias Lebre, professor da Escola Médica, José Maria de Queirós Veloso, Sampaio Bruno e Joaquim d'Araújo. É possível que alguns dos outros nomes tenham sido alterados, mas é razoável supor que as caracterizações se inspirem em personagens reais.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A Academia Politécnica, c.1880

Fotografia publicada no Annuario da Academia Polytechnica do Porto, ano lectivo de 1881-82 (disponível na página do Fundo Antigo da Biblioteca da FCUP).

Trata-se de uma vista do lado norte, ou seja, da praça actualmente conhecida como "dos Leões; mas note-se que a Fonte dos Leões ainda não existia.
É ainda visível, no meio do edifício, a torre do sino da Igreja de Nossa Senhora da Graça, que ainda não tinha sido demolida.

terça-feira, 6 de abril de 2010

A Academia Politécnica nos anos 80 (do séc. XIX)

[Hemeterio Arantes, Mundo de Cristo, cit. in O Tripeiro, ano IX, pág. 273]


Quando, um dia destes, um amigo querido e professor ilustre me levou até à Faculdade de Ciências, onde deveres do cargo chamavam a sua presença, devo confessar que não foi sem certa comoção que penetrei no átrio do edifício que foi outrora, há uns bons 45 anos [este artigo foi escrito em 1929] a Academia Politécnica do Porto.

Entrei, ali, como quem entra num mausoléu... rico, pois que quando eu entrava diariamente naquela casa, por uma porta escusa que enfrentava o Mercado do Anjo, essa casa seria, quando muito, um casarão - bem desgracioso e pobre - para templo da ciência. Nela se albergavam, a um tempo, a Academia, o Instituto e o Colégio dos Meninos Órfãos. Estes meninos nunca os encontrávamos no nosso caminho e, apenas, eclesiasticamente vestidos, nalgum enterro, cujos ofícios se celebravam, com estrondo, ou na Lapa, ou na Trindade; depois sumiam-se, até que de novo fossem chamados a dar pompa aos fúnebres obséquios que. por alma do morto de importância social e monetária, se realizavam no Carmo ou em S. Francisco.

No edifício, e do lado posto ao Anjo, tinha-se estabelecido o Café do Chaves[1], onde nos reuníamos nos intervalos das aulas, excepto quando se tratava da aula de Botânica, porque, então, enquanto o professor (venerando velho, que por usar a cara rapada absolutamente escanhoada era chamado o Padre Sales e ele, por sinal era almirante) prelecionava, todos nós, menos três ou quatro que ficavam de plantão, serenamente íamos jogar o solo para o Chaves. Às vezes, as partidas eram subitamente interrompidas por este grito de desolação: - O Padre Sales mandou tirar segundo ponto! Tudo, de roldão, se precipitava na aula (que ficava perto) atrás do contínuo e quando este declarava que estávamos todos, Padre Sales abafava uma risadinha irónica no lenço de Alcobaça e nós, de novo, com a mesma serenidade e desvergonha, seguíamos em bicha atrás do contínuo a reatar a partida interrompida.




[1] No rés-do-chão, o edifício tinha “lojas de abóbada”, que eram alugadas.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Velhos Tempos

[Brito Camacho, De Bom Humor, cit. in Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 17]


A minha “república” transferiu-se de Coimbra para o Porto e instalou-se na Rua dos Bragas, paredes-meias com a Aurifícia. Aparte dois rapazotes, em começo dos preparatórios, e o José Maria Parreira, irmão do almirante Ladislau Parreira, éramos todos alunos da Academia, excepto o Paulino Torres e Almeida, de Braga, que frequentava medicina.

Dos professores de então, os da secção filosófica[1] e os da secção matemática, já nenhum existe.

Outro dia, fazendo uma conferência na Faculdade de Ciências, a antiga Academia, senti uma grande saudade do tempo que ali passei e, rapidamente, como num filme, fechando os olhos para ver melhor, todos os pequenos sucessos da minha vida académica, aluno da Academia durante dois anos, perpassaram na minha memória, com todas as circunstâncias do tempo, modo... e pessoas.

Era professor de Física o conde de Campo Belo, tão aprimorado no seu trajar e tão adamado em suas maneiras, que lhe bastaria cortar o bigode para de conde passar a condessa.

Era professor de botânica o padre Sales... Ninguém estudava para a aula de botânica, cujo professor, oficial de marinha, rapado à moda actual, impunha a aprovação de todos os seus alunos que iam a exame, fosse qual fosse a sua frequência, quer respondessem alguma coisa, quer nada respondessem. Quem não perdesse o ano por faltas, com boas ou más notas nas lições, bem classificado ou mal classificado nos exames de frequência, tinha a certeza de ficar aprovado no exame, ainda que não abrisse a boca, ou só a abrisse para dizer asneiras.

O padre Sales não teria mais uma hora de felicidade desde que lhe reprovassem um aluno. Sucedia o mesmo com o dr. Arnaldo Braga, mau professor como o colega de botânica, pois que nada ensinava aos alunos.

Numa recepção oficial, nos Paços dos Carrancas, o padre Sales apresentou-se fardado, já almirante, tendo feito todos os tirocínios... a bordo da Academia.

Perguntou-lhe D. Luís:

- O almirante fez muitas viagens?

- Muitas não, meu Senhor, mas vim embarcado de Lisboa para aqui.

Na aula do padre Sales fiz como todos faziam - não estudei, chegando ao fim do ano com o meu Precis de Botanique, de Richard, intacto, como se fosse uma das onze mil virgens. Para as outras cadeiras tinha estudado a valer, e tanto assim que, não sendo estudante recomendado, me lambi com as mais altas classificações.

O padre Sales classificou-me como eu não merecia, e isso me determinou, retirando de vez para Lisboa, a ir a Matosinhos apresentar-lhe os meus agradecimentos e fazer-lhe as minhas despedidas.

- Eu sei que o senhor não abriu livro na minha aula; mas nas outras foi um grande estudante e, por isso, o classifiquei assim. Porque não estudou botânica, como estudou física, como estudou química, como estudou zoologia?

- Tive receio que V. Ex.ª levasse a mal. Como não era costume...

Abraçou-me com ternura o santo homem, desejando-me boa viagem e muitas felicidades no futuro.


Dos meus condiscípulos na Academia, quantos vivem ainda?

De muitos já esqueci o nome, mas de quase todos me recordo, como se estivesse a vê-los em retrato, porque me dotou a Natureza com uma excelente memória de fisionomias. Dizem que esta prenda é vulgar nas pessoas desconfiadas, naturalmente porque elas, mais do que outras quaisquer, fixam com insistência as pessoas com quem tratam ou simplesmente se encontram, a ver se lhes conhecem as qualidades da alma, pelos caracteres da fisionomia.

Homem muito novo o Francisco Diogo de Sá, inteligência superior e carácter modelar, estudante que nunca entrou numa aula sem saber a lição e nunca foi para os exames sujeito às contigências de uma lotaria.

Mais novo do que ele morreu o Manuel Tavares, pois morreu aos dezanove anos, frequentava o quinto ano de matemática e fora meu condiscípulo em zoologia. A sua debilidade congénita impedia-o de ser um trabalhador; mas também ele não precisava trabalhar, porque tudo era fácil para a sua compreensão maravilhosa, eminentemente intuitiva, servida duma memória admirável.

O dr. Azevedo e Albuquerque, ao tempo professor de mecânica racional, via nele um génio matemático, superior ao Amorim Viana, consagrado como o Newton português, tão versado nas matemáticas como na filosofia.

Já não deve ser viva a senhora Miquelina, nossa criada, por assim dizer nossa patroa, porque ela punha e dispunha de tudo na “república”, todas as noites dando as despesas a rol, a menos que estivesse bêbeda a cair. Era o seu único defeito - entrar na pinga. Cascava-lhe às comidas, e nos intervalos, para enrijar a fibra, bebia copinhos de aguardente, alegando que o médico, lá na terra, lhe aconselhava esta medicação como tratamento duma urçula no estamego que, às vezes, lhe causava dores horríveis.

Chamavamos-lhe a mamífera desdentada, porque os dentes, uns agora, outros logo, tinham-lhe caído todos, e ao mesmo tempo, não se usavam como agora, dentaduras postiças.

Se ainda será vivo um boémio de Braga, de nome Custódio, que muitas vezes aparecia na Rua dos Bragas, à tarde, depois do jantar, a convidar-me para um passeio? Não resistia, o Custódio, passando por uma taverna, a enxugar uma caneca do verde, prática em que eu não o acompanhava, por ser fraquíssimo bebedor.

Era embaraçoso andar com o Custódio na cidade, porque ele tinha credores em quase todas as ruas.

- Afinal, onde é que tu podes andar sem receio?

- Sem receio, só por fora de portas, porque aí não fiam.


Hei-de voltar ao Porto, com vagar, na mais completa liberdade de movimentos, a ver se encontro, em evocações longínquas, um pouco da mocidade perdida.

E, então, repetirei a ascenção que outro dia fiz, da beira do rio à Praça da Batalha, tendo espreitado para dentro das cavernas trogloditas que ainda ilustram o cais, sempre a subir, podendo dar-se o caso feliz, para regalo dos meus olhos, de novamente me aparecer a desempenada moçoila que ainda outro dia ali encontrei, loira como um tipo de Veneza, os contornos bem desenhados, adivinhando-se por baixo das roupas pobrezinhas mas limpas, uma carnação fresca e sadia, com tonalidades de rosa e leite. Volta-se ao passar por mim; na canastra que leva à cabeça, cheia de roupa, branca, lavada de fresco, eu li esta palavra estranha - Veneza. Fecho os olhos e nitidamente vejo na minha frente, quase ao alcance da minha mão e dos meus desejos, a linda “Suzana” de Tintoreto, a sair do banho, em completa e estonteante nudez.

Que pena Satanás, por estar rico ou ter falido, ter-se retirado dos negócios, deixando de comprar almas ao preço duma prolongada juventude!

Dum Fausto sei eu que que lhe vendia a sua não regateando.




[1] “Filosofia (natural)” era uma expressão então usada com o sentido de ciências naturais.