quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Alguns testemunhos sobre praxe/troça/recepção ao caloiro no Porto antes da República


Academia Politécnica, 1860/61

[José Augusto Carneiro, "As Bodas de Oiro dos alunos do 1.º ano de matemática da Academia Politécnica do Porto no ano lectivo de 1860-1861", O Tripeiro (1.ª série), 2.º ano, n.º 65, 10 de Abril de 1910]

Dotado de uma natureza franzina, tivemos de nos sujeitar de entrada às provas a que os caloiros eram submetidos e, depois de considerado pronto, compartilhamos também, com uma petulância que não nos estava na índole, só para aparentar uma certa energia, da troça feita a outros condiscípulos ainda mais caloiros que nós.
É bom notar, porém, que nessas provas a que se sujeitavam os caloiros na Academia Politécnica do Porto não entrava o famoso canelão adoptado na Universidade de Coimbra, e outros penosos e censuráveis tratos de que têm resultado graves conflitos e desgraças.
Na Academia Politécnica do Porto limitavam-se os veteranos[1] a desfrutar[2] os pobres caloiros que passavam pela rua em frente ao edifício e que mais se prestavam a isso, por ocasião do Carnaval, e algumas vezes até fora dessa época.


Academia Politécnica / Escola Médico-Cirúrgica, c. 1900

[António de Almeida Garrett, "Já lá vão mais de 50 anos!...", Porto Académico, n.º único de 1962, págs. 27-29]

Começarei pelo primeiro passo: o ingresso dos caloiros da Médica. Matulões dos últimos anos juntavam os neófitos à porta da Politécnica, frente à Cordoaria, e de ali os levavam em cortejo, num alarido de gaitas estridentes e álacres chalaças, até à entrada da Escola, para a simbólica adopção de discípulos de Esculápio. Escolhiam os mais graúdos para pegar na tosca padiola, destinada ao bobo da festa, ao penico e competente vassourinha, a peça essencial do cortejo. Naquele ano fui eu o padiolado, por determinação do grupo organizador, chefiado por um barbaças, o Teixeira Bastos, mais tarde colega na docência e queridíssimo amigo.
[...] duas festanças de todos os anos, a da entrada dos caloiros e a da entrega da pasta ao findar do quinto ano [...]

[Artur da Cunha Araújo, "Em outros tempos", Porto Académico, n.º único de 1937, pág. 25]

Quando nos iniciamos na pesada tarefa de conseguir uma carta, ao transpormos pela primeira vez os ombrais da Politécnica, foi pela “porta do cavalo” que conseguimos escapar ao vexame do cachaço e da chacota acerada dos veteranos, capitaneados pelo “Trinta”!
[...] Os caloiros tremiam ante as barbas patriarcais do Comendador e do Trinta e suavam ouvindo as injecções mordentes do Godide e do Serafim de Barros...


Academia Politécnica, 1904

["Aconteceu há 50 anos...", O Tripeiro (5.ª série), ano X, Novembro de 1954, p. 219]

Dia 10 [de Novembro] - Tem lugar a festa dos caloiros. Os ditos saíram, em procissão cómico-solene, da Politécnica para a Médica, onde foram atroadoramente recebidos e, da Médica, para o Jardim da Cordoaria, a fim de prestar simbólica homenagem à "Virgem Flória".

[Um relato muito mais pormenorizado desta "festa dos caloiros" pode ser lido em Uma "festa dos caloiros" em 1904.]


Instituto Industrial e Comercial, 1905

["Aconteceu há 50 anos...", O Tripeiro (5.ª série), ano XI, Novembro de 1955, p. 223]

Uma comissão constituída pelos académicos Agonia Vieira, Seabra Moura, João Teixeira, Oliveira Santos, Amílcar Monteiro e Correia Lopes, promove grandes festejos de recepção aos caloiros do Instituto Industrial e Comercial do Porto, do programa dos quais se destacaram, pela sua comicidade e pitoresco, os números do cortejo da caloirada (bebés com babadores, cueiros e fraldas) e o do enterro da última reforma daquele estabelecimento de ensino.
Fez também sucesso o número único “O Caloiro”, profusamente vendido a favor do fundo de Assistência da Associação Académica.


Academia Politécnica, 1908

["Aconteceu há 50 anos...", O Tripeiro (5.ª série), ano XIV, Novembro de 1958, p. 217]

Dia 7 [de Novembro] - Realiza-se a festa dos caloiros da Politécnica com uma hilariante procissão em que os mesmos, com grotescos trajes de papel azul e branco, foram obrigados a dar a volta à cidade atrás de um carro de mão com um cómico painel alusivo à cerimónia. Abria o préstito um reboludo “bebé” de chupeta, com um cartaz em que se liam os seguintes versos:

            Ó mocidade heróica e bela,
            Que é da bravura, da alegria?
            Chupas baixeza, hipocrisia,
            Fartas a sórdida goela
            em
biberons de sacristia!

        Legião, Legião, Legião,
        Legião que se vai formar!
        Chupada está a barriga,
        Legião já quer trincar!


 A função terminou no átrio do edifício da Escola com alguns cómicos discursos e com tudo a cantar, com letra adaptada à borga, o Hino da Bandeira.




[1] Não se leia a palavra "veterano" com o significado actual. Provavelmente aplicar-se-ia a qualquer estudante que já não fosse caloiro ("doutor", dir-se-ia hoje). Em Coimbra, no início do século XIX, era veterano quem tivesse terminado o primeiro ano (com aprovação); e nos anos 60 do mesmo século, eram veteranos os alunos do 4.º e 5.º anos (Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra, 1537-1990, Lisboa: Rei dos Livros, 1990, p. 470).

[2] Já não é muito habitual usar a palavra com este sentido, mas "desfrutar" pode significar "zombar de" (Candido de Figueiredo, Nôvo Diccionário da Língua Portuguêsa, 1899), "gozar, troçar" (Dicionário da Porto Editora).