terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fotografias da Tuna Académica do Porto em 1909 (e 1908?)

Em 1909 organizou-se uma Tuna Académica do Porto (ou, consoante o ponto de vista, reorganizou-se a Tuna Académica do Porto) com o objectivo de visitar Santiago de Compostela nas férias do Carnaval (retribuindo uma visita da Tuna de Santiago ao Porto).
Essa Tuna de 1909 é recordada no artigo "Dos tempos que já lá vão", do Eng. A. da Costa Pereira, publicado no Porto Académico, n.º único de 1962, págs. 47 e 50 (com pelo menos uma imprecisão: diz que essa foi a primeira Tuna Académica do Porto, o que está manifestamente errado).
Acompanhando o artigo de Costa Pereira, aparece uma fotografia da Tuna, com fraca qualidade:
(Não conheço nenhuma publicação desta fotografia anterior a 1962, mas posteriormente apareceu algumas vezes, suponho que reproduzida do Porto Académico, com a mesma fraca qualidade.
[Correcção de 28/12/2010: Depois de publicar esta entrada do blogue, adquiri o Programa do ano lectivo de 1937-38 da Tuna Universitária do Porto (algumas páginas deste folheto podem ser vistas no blogue Portus Cale Tunae), e verifiquei que esta fotografia já lá tinha sido publicada,
com qualidade ligeiramente melhor e com os nomes de alguns dos tunos.])

Mas eis que a fotografia aparece noutra cópia, num dos blogues de José Pacheco Pereira (Ephemera, um tesouro de documentação vária, sobretudo política mas não só), embora mal identificada (a fotografia foi tirada na Corunha e JPP terá lido mal "Coimbra" na inscrição no canto inferior esquerdo):

E há bónus: a fotografia aparece num conjunto de Fotografias de grupo (início do século XX) onde se vêem mais três com estudantes (mais precisamente, tunos).
Uma destas foi também tirada na Corunha, e é claramente da Tuna Académica do Porto (junto com alguns locais - estudantes do ensino secundário da Corunha?):


As outras duas fotografias foram tiradas em Vila Real em 22/4/1908 e, sendo claramente de uma tuna, não é líquido que sejam da Tuna Académica do Porto.

Mas o fotógrafo parece ter sido o mesmo (JSantos, embora tenha mudado a sua assinatura) e parece-me ver pelo menos duas caras comuns às quatro fotografias:



Seja como for, e apesar das falhas na "nova" cópia da fotografia clássica da Tuna de 1909, esta é uma adição importante para a iconografia académica do Porto (não há muitas imagens da Tuna Académica do Porto, nem sequer de estudantes do Porto de capa e batina, anteriores à República).

[Um abraço ao Tiago Laranjeiro, que me chamou a atenção para estas fotografias no Ephemera.]

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Tradições Académicas no Porto
Uma exposição em 1995


Em 1995, no âmbito da Semana de Recepção ao Caloiro, a Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto organizou uma exposição sobre as Tradições Académicas no Porto. Ou, mais precisamente, sobre a sua História. Embora eu não pertencesse à Direcção da Associação, nem sequer fosse (pelo menos oficialmente) colaborador, fui o principal responsável pela recolha e organização do material exposto, redacção das legendas explicativas, etc. Fui ajudado nestas tarefas pelo responsável pelo Departamento de Tradições Académicas, Pedro Marques, que também teve a seu cargo alguns aspectos mais logísticos e/ou burocráticos.

Sem falsas modéstias, creio que conseguimos reunir uma amostra interessante e significativa. O material exposto provinha maioritariamente do Museu de História da Medicina Maximiano Lemos (da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto), do Museu do Orfeão Universitário do Porto e da colecção de fotografias da Associação de Antigos Alunos da Universidade do Porto (inactiva; esta colecção estava à guarda do Conselho Directivo do ICBAS). Em menor medida, emprestaram algumas peças o Museu de Mineralogia e Estratigrafia e vários particulares (entre os quais recordo Flávio Serzedello de Oliveira, dr. Álvaro Andrade, dr. Luís Abrunhosa Vasconcelos e Doutor Fernando Noronha).

Estupidamente, e assumo inteiramente a minha culpa nisto, não foi feito um catálogo da exposição, nem sequer uma documentação fotográfica em condições. Restam dela hoje em dia as quatro fotografias abaixo, vários painéis com as (pequenas) legendas e as fotocópias expostas (nos casos em que não estavam expostos os originais) e a lista dos objectos emprestados pelo Museu de História da Medicina.


Nesta fotografia apareço a falar com o dr. Rui Bessa, então presidente da Direcção (ou talvez da Assembleia Geral) da Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto. Pelo painel para o qual aponto, estou provavelmente a explicar que o Traje Académico Feminino não surgiu no OUP (nesse painel havia uma fotografia dos anos 20 de uma aluna do Liceu Alexandre Herculano com Traje Académico).


Aqui apareço a falar com uma jornalista. Em fundo, vários painéis sobre o Traje Académico.


Nesta fotografia, pode ver-se um então aluno da FCUP (Jorge Reis Sá), lendo um artigo sobre uma Queima das Fitas dos anos 50 ou 60.


Nesta última fotografia vê-se um expositor com pastas de quintanista de luxo (do Museu de História da Medicina, com uma excepção) e uma mais recente (anos 60) de "semi-luxo" (do Doutor Fernando Noronha). Em fundo, um painel com alguns cartazes da Queima das Fitas dos anos 60, 80 e 90 (embora, devido ao expositor em frente, só se consiga ver aqui, e em triplicado, o cartaz de 93).

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"Manda a tradição" - MEC

Como deve ser óbvio, este blogue está de férias. Mas não resisto a partilhar a crónica de Miguel Esteves Cardoso no Público de 25/08/2010. Que não é sobre tradições académicas, mas é sobre tradições, e levanta questões pertinentes.
Não tenho a certeza de que sejam fiáveis os dados da notícia que MEC comenta (lembro-me de uma notícia sobre a Queima das Fitas no Público, início dos anos 90, que dizia que a Queima do Porto remontava aos anos 60...). Mas se não forem verdadeiros estes, são verdadeiros outros semelhantes, sobre outras tradições (nomeadamente académicas).
Não me vou alongar sobre os comentários de MEC no último parágrafo. Apenas digo o seguinte: não vejo qualquer problema em que este costume seja seguido (desde que se cumpram normas de segurança, claro); mas o que pode "mandar" uma tradição destas?


Manda a tradição
Miguel Esteves Cardoso

Quanto tempo leva a criar uma tradição? E por quanto tempo se pode interromper antes de se perder? Eis a primeira frase de uma notícia no PÚBLICO de ontem: "Um homem entrou num forno de lenha aquecido a mais de 250 graus, durante a recriação do chamado milagre da Urgueira, que atrai anualmente milhares de pessoas." Respirei fundo, invocando a tolerância pelos velhos costumes e cantarolando o velho jingle do café Sical: "Cada terra com seu uso, todos com Sical."

Mas o resto do primeiro parágrafo desasossegou-me: "A tradição tem origem em finais do século XIX, mas esteve interrompida desde 1904, ano em que morreu o homem que a protagonizava, sendo relançada em 1996 pela Associação Etnográfica Os Serranos." Se a tradição começou no fim do século XIX - digamos 1890, só durou 14 anos. Quando morreu o homem que entrou no forno, decidiram acabar com ela. Continuou acabada por mais 90 anos, de 1905 a 1995. Desde 1996 foi retomada durante mais 14 anos. Quando a interrupção de uma tradição é maior (90 anos) do que o número de anos em que é cumprida (28 anos), foi a tradição que foi interrompida ou a interrupção que foi retradicionalizada?

Portugal está cheio de tradições deste género, que brotam e se desenterram por toda a parte, respeitando-se ou esquecendo-se conforme as conveniências. É à vontade do freguês. Que se há-de fazer? Nada. Esse à-vontade relativista é uma espécie de liberdade - e é a nossa verdadeira tradição.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Rapto da Macaca

[Joaquim Ribeiro Chaves, Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 6.

Recomendo a leitura da secção final de Bons Tempos antes da deste texto, já que lá se encontra um relato mais detalhado do Rapto da Macaca.]


Por intermédio do amigo comum Arlindo Soares, chegou até mim o pedido de um artigo, para o número comemorativo das bodas de ouro da Universidade e Orfeão Académico nortenhos. Do que foi a mocidade de então, irreverente e folgazã, falam-nos o documentário fotográfico e a memória viva, a todo o instante remoçada, nos contactos de uma geração que teima em não envelhecer.

Falar do Porto, da vida académica, dos laços de amizade, dos ângulos da vida citadina do velho burgo, com todas as virtudes e defeitos, é para mim transportar-me a paisagens edénicas, muito alto, pelas fantasias do sonho, é dar-me intensas tremuras de comoção. Aquele Porto, que eu conheci há tantos anos, quando abri pela primeira vez as tenras pálpebras, aquela cidade buliçosa no seu trabalho exaustivo, aquele casarão – o Hospital da Misericórdia[1] – que me apresentou ao Mundo, a nova mole de pedra, em frente, que me deu um título, os genuínos pregões que tantas vezes me acordaram, o deambular noctívago pelos meandros da luz e da penumbra, tudo isso pertence ao passado, mas vive da perenidade de uma memória que não se dissipa. Ainda hoje, longos anos volvidos, visito com saudade aqueles recantos, que me deram a felicidade por conta-gotas e fizeram de mim um romântico, um sonhador impenitente, uma hercúlea força de vontade, apostado em vencer as maiores crises, com que a madrasta da vida teima em mimosear-me.

À parte raras excepções, não teremos neste número, como no anterior, crónicas dedicadas a astros na medicina e nas letras, de primeira grandeza, da larga envergadura de um Ricardo Jorge, um Ferreira da Silva, um Camilo e outros. Esses grandes, em qualquer parte do Mundo, não se repetem nos séculos, mas iremos reviver a nossa hora de saudade ateando o fogo sagrado de uma convivência feliz, despreocupada e alegre, nos artigos que as musas derem à luz. Lamento, no entanto, a lembrança e não mereço a honra que me deram, em participar nesse número de uma tal projecção académica, ao trazer o pequeno tributo da minha desataviada prosa. Caem sobre mim os primeiros flocos de neve, mensageiros indesejáveis dos estragos do tempo, meio século já passado de uma luta sem tréguas, e a caneta indecisa e tímida a custo vai dizendo o pouco que sabe do muito que viveu. E assim, como quem não quer a coisa, chegamos ao célebre episódio da «macaca» incidente ou fasto que teve foros de audácia, nas irreverentes manifestações de sangue na guelra.

Corria branda a manhã e nos claustros do senado académico, uns tantos conspiradores davam os últimos retoques no plano do mais sensacional rapto, executado pela turba académica. O caloiro, a vítima escalonada para o efeito, ordenança de cega obediência, devia embrulhar o símio no negrume da capa e em fuga rocambolesca entregá-lo ao supremo tribunal académico, na Associação Académica, paredes meias com o velho liceu de Rodrigues de Freitas.[2] Perante a estupefacção da clientela embasbacada, das mil e uma bugigangas oferecidas à pasmaceira do público e num lance de prestidigitação, a dócil macaca atónita e trémula deixou-se enlaçar, para um julgamento sumário.

E a Praça da Liberdade, a tipóia e a vendedeira de um sem-número de panaceiras desgrenhadas e a gesticular permanecem na minha memória, como quadro vivo, da nossa vida académica. Seguiu-se um julgamento em forma, o qual terminou pela absolvição da ré, após a defesa brilhante do Dr. Alcino Pinto, que achou indecoroso trazer ao pretório um inocente primata, dinâmico reclamo da banha da cobra. E eu que estava como Pilatos no Credo, fiquei condenado nas custas, como adiante se verá. Distribuiram-me – pobre caloiro! – um balandrau, uma corneta e uma cartola, indumentária que, depois de enfiada no cabide, me tornava irreconhecível como convinha. Um veterano comandava o pelotão de quantas vítimas acaloiradas encontraram à porta de Minerva e eu dava o toque de cornetim, segundo as ordens do chefe. E então, a dois formar, descemos à Praça, todos com os fatos ao invés e calças arregaçadas, para gáudio da multidão.

Depois de uma série de manobras da real gana do chefe, seguimos para a então Faculdade de Letras, a qual tomámos de assalto, estabelecendo aí o pânico, para depois, senhores da situação, nos entregarmos a exercícios estratégicos, os mais variados. Descia a noite e quase todas as vítimas da folia estavam com o café da manhã, mas aquele bando de andorinhas, chilreando e a dar largas à sua mocidade exuberante, voltou aos beirais do último andar, a preços módicos, das típicas ruelas do meu saudoso Porto. E desta maneira ficou encerrado um episódio genuinamente académico, mais uma brincadeira inofensiva a marcar uma época de efervescente bom humor.




[1] Isto é, o Hospital de Santo António.

[2] O Liceu Rodrigues de Freitas funcionava então na Rua de S. Bento da Vitória, no edifício onde está hoje instalada a Polícia Judiciária.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Bons Tempos...

[Henrique Almeida, Porto Académico, n.º único de 1962, págs. 7-8]

Quando a rapaziada entrou pela primeira vez, em Outubro de 1921, no átrio sul da Universidade do Porto, para ouvir o mago da química Ferreira da Silva, foi com pânico que viu os estudantes Emídio Guerreiro[1] e o Sobrinho das Barbas, os dois «terroristas» da caloirada.

Indivíduos absolutamente diferentes e opostos no temperamento e no físico, dir-se-iam dois biotipos padrões: um, o primeiro, fisicamente magro, quase limitado ao osso, de génio arrebatado e de inteligência fortemente imaginativa – tipo D. Quixote – o outro, de avantajadas carnes, espantosamente gordo, de largo perímetro ao nível da cinta, no todo um peão humano mas de génio muito calmo, muito frio e de reacções muito lentas, tipo Sancho Pança.

A presença destes dois sujeitos – com uma fama e uma tradição insuperáveis no que dizia respeito à perseguição ao caloiro – era para nós, neófitos universitários, uma segura e certa promessa de que daí a nada, dentro de muito poucos segundos, haveria espectacular garraiada. E assim foi. A coisa principiou logo ali no átrio de química pela operação denominada a tonsura do caloiro. O Sobrinho das Barbas, aquele Himalaia de banha, de tesoura em punho, caiu impiedoso e sádico sobre as cabeleiras que ele, o vândalo de instintos capilaricidas, julgou de mais pretensiosas ou de mais petulantes.

O Sobrinho das Barbas [Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 7].


E um após um dos componentes daquele bisonho, triste e conformado rebanho foi sujeito a esta e a muitas outras tropelias, deste e de outros doutores. O Guerreiro, que era então o chefe da Orchestra Katastrophica – a mais obsoleta e estúpida instrumentação musical que jamais se viu – e que tinha a mania do discurso – para o que tinha inegável jeito, diga-se de passagem – obrigava ora este ora aquele a perorar sobre os temas os mais disparatados ou os mais extravagantes.

«Fale – impunha o Guerreiro – sobre a influência do queijo no aparecimento e no crescimento das Pirambolas do Egipto». E ai daquele que não dissesse meia dúzia de asneiras de respeito e todas de enfiada; massacrava-o então com perguntas e cavalgava-o, o que era bem pior.

Foi assim sob uma penosa influência duma praxe – já então muito pouco aceitável e muito pouco recomendável para a época – que nós fomos ouvir a primeira lição do sábio químico Ferreira da Silva. Vítima duma doença nervosa de implacável garra, entristecia ver aquele facies sem mímica, fixado numa expressão imutável de indiferença o «facies figé» dos Parkinsonianos e aquele trémulo das mãos e dos dedos, estranha cinética de não menos estranhas configurações. Mas aquele cérebro brilhava, porém, de tal modo que nós os seus ouvintes e alunos quase que não víamos as exteriorizações do seu mal, tão grande era a fascinação daquela sua luz interior.

E assim doente continuou ainda por muito tempo a reger química, com espantosa assiduidade e proficiência.

E assim continuou ainda por muito tempo para honra da nossa Universidade.

Depois da prometedora estreia universitária que acima relatámos, veio, como não podia deixar de ser, o hábito, o treino, a adaptação e por último a indiferença. O contacto dia a dia com os doutores, quer na Universidade, quer nos cafés, quer ainda no Orfeão, gastou as últimas resistências a uma boa e sã camaradagem. E foi sem dúvida o nosso Orfeão o agente que mais poderosamente contribuiu para uma boa compreensão, para um são entendimento entre os rapazes dos diferentes graus universitários. Como não podia deixar de ser inscrevi-me neste afamado grupo coral, mas devo declarar em abono da verdade que desiludi o seleccionador, o meu querido amigo e colega Franscisco Lage.

Eu não dava nota musical capaz, por muito que ajeitassa a laringe, mas o Lage era amigo e inscreveu-me no naipe dos barítonos.

Por desgraça minha, ou antes e melhor, por desgraça do Orfeão, havia outro académico que desafinava tanto ou mais do que eu: era o Sobrinho das Barbas, que o padre Ramos, o regente, quis que ficasse sempre à minha sinistra. E naquela noite de estreia no Teatro S. João, ao abrir do pano de boca, o padre Ramos veio direito a nós ambos e clamou: Pelas cinco chagas de Cristo finjam que cantam, porque só vocês, os dois, dão cabo disto. E assim fizemos, abrimos a boca a ritmo ou a compasso com as demais, mas sem que dela saísse qualquer som.

O segundo espectáculo foi no Teatro-Circo de Braga e aqui o padre Ramos repetiu a ordem mas dessa vez exclusivamente à minha pessoa. Suponho que foi castigo pelo que momentos antes sucedera mas de que não fui o principal responsável. E o que se sucedeu, foi o seguinte: – Era orador oficial do Orfeão o Zé Martins, um moço que cultivava e com muito jeito o discurso romântico tanto do agrado da época e das meninas histeróides. Magro, noventa por cento osso, pele muito tostada, quase negra, gaforina desordenada e que ele mais desordenava nos arroubos da sua ditirâmbica oratória, o Zé, que era um excelente moço, tinha porém um senão – de vez em quando descambava em profusas libações em honra de Deus Baco e então sucedia o diabo. Ora o Zé Martins naquela noite de espectáculo não estava bem seguro do seu centro de gravidade.

Corrido o pano e ouvidos os complacentes e habituais aplausos, o Zé avançou pelo palco fora até à beirinha da ribalta e esteve vai não vai para cair em cima da plateia. Por nós todos, e principalmente por mim que sempre adorei este admirável rapaz, passou um frio de morte. Mas o Zé aguentou-se e lembro-me como se fosse hoje que ele principiou assim o discurso que não chegou a acabar: «Minhas senhores e meus senhores: Neste momento histórico em que Gago Cabral e Sacadura Coutinho atravessam o Atlântico...»

Eu que estava imediatamente atrás do orador e no bom intuito de corrigir a gafe, disse-lhe quase em murmúrio: «Ó Zé, olha que é Gago Coutinho e Sacadura Cabral». O moço calou-se por um instante, apercebeu-se do erro e voltou ao princípio do discurso, mas trocou novamente os apelidos aos dois aeronautas. A plateia riu-se, os académicos sussurraram forte alguns impropérios, o Zé não arrancava palavra e o pano correu vertiginosamente ao mando do Padre Ramos já em cólera.

O Zé, o bom e querido amigo Zé Martins, estava siderado e no fim do primeiro acto fui dar com ele, sentado nas escadas das traseiras do palco, a chorar convulsivamente. Juro-te, Henrique, dizia ele com soluços na garganta, que não volto mais a discursar, mas tens de dizer-me quem foi o tipo (aqui não respeito a verdade, porque a designação foi outra) que me emendou, porque esse é que foi o causador do meu grande fiasco.

É evidente que naquela noite não o fiz ciente do causador involuntário daquilo a que ele chamava fiasco, mas fi-lo mais tarde, entre dois golos de café, no Excelsior, numa franca e leal camaradagem como sempre soubemos fazer. Isto passou-se, como se percebe, na altura em que os nossos primeiros descobridores do espaço iam numa pobre e mísera aeronave a caminho do Brasil. O que foi neste país e sobretudo no Porto, quando os dois heróis do ar remataram a sua extraordinária odisseia e quando eles visitaram a nossa cidade, ninguém queira saber. Espectáculo tão grandioso nunca eu mais vi na minha vida e a briosa[2] contribuiu imenso para essa grandiosidade emprestando-lhe o máximo do seu entusiasmo juvenil.

Bons tempos, patrão, como dizia o saudoso e grande actor cómico Estevão Amarante na revista, creio eu, «O 31».

Ao desboninar estes saborosos nacos da minha vida estudantil, tenho forçosamente de recordar não só os meus condiscípulos como ainda os meus contemporâneos, essa grossa falange de rapazes que tanto havia de dar que falar.

Se o meu curso deu médicos muito distintos e afamados e ainda ilustres mestres, tais como Álvaro Rodrigues, Sousa Pereira, Pereira Viana, Fernando Magano e Luís de Pina, muitos outros estudantes meus contemporâneos e que frequentaram outras faculdades marcaram e marcam ainda relevantes posições na nossa sociedade. Assim permito-me recordar alguns alunos da extinta Faculdade de Letras e que deviam ser mais tarde não só ilustres professores do ensino secundário como ainda escritores de grande nomeada e projecção: José Marinho, Salgado Júnior, Santana Dionísio, Armando Lacerda, Agostinho Silva[3], Mateus Macedo e outros.

Nas Faculdades de Ciências e de Engenharia, recordo-me do actual reitor da Universidade, Prof. Correia de Barros; Farinas de Almeida, actual director da Faculdade de Engenharia; Pais de Aguilar; José Praça, um dos mais eloquentes e fogosos conversadores que eu tenho ouvido; Modesto Osório – o regente da Tuna Académica – um excelente carácter e inexcedível nos cuidados e trabalhos com o seu grupo artístico; Adalberto Mendo, engenheiro Paulo Marques, então sargento cadete e que podia servir de figurino a qualquer tropa, tão apurado e peralta era ele no seu uniforme, e finalmente o António Santos Nobre, um dos mais cultos e inteligentes rapazes da minha geração e que foi o fundador deste jornal.

Na Faculdade de Farmácia, brilhava como estrela de primeira grandeza o Marques de Carvalho, que tão grande influência política veio a ter na Academia, já então em franca assimilação do ideário integralista. Contra uma lista republicana, venceu o integralista Marques de Carvalho por uma larga margem de votos.

Esclareça-se que isto aconteceu só em vésperas de 1926. Até então a briosa vivia para o Orfeão e para a Tuna, discutia os seus problemas e derimia as suas pequenas divergências dentro das portas da sua casa, a Associação Académica. Assisti e compartilhei de muitas discussões nas assembleias gerais e sempre verifiquei a preocupação de afastarmos todas as causas ou todos os motivos de divisão entre nós. A Associação, que era exclusivamente nossa e onde nenhuma entidade podia meter o bedelho, foi óptima tribuna para treino oratório de muitos rapazes. Ali se fizeram oradores de muito apreço alguns que supunham não ter qualquer jeito para a sublime arte de discursar sem papel ou sem partitura, como hoje se usa e abusa.

As nossas discussões nas assembleias gerais eram francas, leais e livres, sem quaisquer peias ou entraves ao pensamento daquele que tivesse reclamado a palavra, salvo as que impunham a lei ou o regulamento. Mas, repito, havia em cada um de nós a preocupação de afastarmos todos os motivos de ressentimentos ou de divisão, sobretudo os motivos políticos.

Monárquicos ou republicanos, liberais ou absolutistas, religiosos ou ateus, havia em todos um denominador comum, o respeito, um venerando respeito pelas crenças políticas ou religiosas de cada qual. E que me lembre, apenas uma vez a nossa querida associação foi palco com cenário político e isso, felizmente, foi episódio muito fugaz. Tinha-se feito na cidade o habitual cortejo cívico de homenagem aos vencidos do 31 de Janeiro, em túmulo no Prado do Repouso, mas a Associação não tinha mandado o seu estandarte como sempre o fizera. Como presidia na Direcção o Silva Leal, então quintanista de Medicina e monárquico dos quatro costados, o facto foi tomado como acintoso e daí uma convocação da Academia para uma assembleia extraordinária.

Que o movimento revolucionário do 31 de Janeiro tinha sido um acto patriótico, afirmavam uns, e por consequência a Academia tinha obrigação de dar presença ao acto da romagem: que não, pretextavam outros, o movimento tinha sido uma rebelião com desígnios ou objectivos exclusivamente políticos e neste caso a Associação tinha de abster-se ou ausentar-se da comemoração – tais eram os conceitos que episodicamente dividiam os académicos. Já não sei que explicações deu o Silva Leal, sei que não passou de pequena borbulha aquela ligeira erupção sentimental, pois tudo continuou a correr entre nós na boa paz e na boa camaradagem.

Vou terminar – e já não é sem tempo – com o relato dum episódio cheio de bom humor e graça e que provocou saudável riso em toda a gente desta cidade que a ele assistiu ou que dele tomou conhecimento.

Estava eu quartanista de Medicina, à porta da Universidade a conversar com o Pinto da Fonseca, já finalista – moço que mais tarde devia deixar o seu nome no quadro de honra nacional pela sua actuação nas nossas províncias ultramarinas, quer como médico quer como investigador – quando fomos perturbados pelo barulho que fazia a mulher da macaca no cimo dum carro puxado a cavalos, hoje um veículo anacrónico e de museu.

A mulher da macaca era no final de contas um dos muitos figurões que ainda aparecem por aí de longe em longe, de verborreia incontinente mas persuasiva e sugestiva, com o fito de impingirem ao basbaque e ao incauto as mais estranhas e inconcebíveis farmacopeias como drogas miraculosas ou redentoras. A macaca era um minúsculo símio, uma amostra escassa de primata, que guinchava por tudo e por nada ao menor esticão do cadeado firmemente preso ao lampião da carroça e era figura central para a atracção deste eterno saloio que é o portuense.

Ora, perguntava-me o Pinto da Fonseca, apontando em direcção da macaca: «Não acha você que é ferir de mais, ofender de mais Minerva, com tão disparatadas aldrabices, aqui mesmo, em frente dum dos seus augustos templos? Não acha desaforo isto de dizer tolices e mentiras em série, sem considerar ao menos o sítio em que se dizem? E se desafrontássemos Minerva ofendida, raptando a macaca? Haverá um charivari dos demónios, mas talvez que isso traga a atenção para quem tem o dever de velar não só pela verdade que nos ensinaram mas ainda pela boa fé desta simplória gente do burgo».

«Mãos à obra, aderi eu logo com entusiasmo», e elaborámos imediatamente o seguinte programa: 1) Convidar os caloiros que estavam a sair das aulas, a comparecerem às 14 horas precisas no átrio da Universidade; 2) Cada um devia contribuir com o mínimo de 50 centavos para despesas do acto solene do doutoramento da macaca em Farmácia; 3) A música do Terço romperia à frente do cortejo que deveria descer Carmelitas e Clérigos, até ao Hotel Rainha, na Praça da Liberdade, estabelecimento extinto já há alguns anos; 4) O António Mendes, meu condiscípulo e um dos rapazes mais ricos em verve e em humor que eu tenho conhecido, faria o curriculum vitae do pequeno primata e o discurso do seu doutoramento. Finalmente dar-se-ia conhecimento ao público de tudo quanto se pensava fazer, através de «placards» distribuídos pela «baixa».

Estabelecida a programação, faltava o principal: roubar a macaca.

Escolheu-se um caloiro de físico potente e de espírito decidido e que queria obter antecipadamente a carta de alforria. Não foi difícil convencê-lo a ser a figura nuclear na operação em projecto. Para a realização de tal cometimento ele só pedia que lhe protegêssemos a retirada, o mais era com ele.

Éramos ao todo cerca duma dúzia de estudantes agora em volta do carro e em mistura com os populares, muito atentos e polarizados à palavra fluente da pantomineira. Esta também não deu pela aproximação lenta e bem dissimulada dos rapazes. Proclamava ela em altos gritos as virtudes terapêuticas duma certa pomada, quando um esticão forte arrancou a presa da macaca à lanterna do carro. O bicho guinchou estridulamente, a mulher sufocou a lenga-lenga e desatou a gritar: «Ó da guarda, agarra que é ladrão» e nós, os guarda-costas, abrimos clareira ao raptador na densa massa dos paspalhões.

Um polícia correu açodado e afoito sobre o caloiro, mas estacou firme sem mais um passo em frente, resvés à boca da Universidade, como se rijo travão premisse forte na mola da vontade. Para além do limiar da Universidade nenhum polícia ousava ultrapassá-lo; fazê-lo, era como se diz hoje pisar o risco, e isso, nenhum ousava.

Como fosse obra de magia, juntou-se ali no Largo da Universidade a mais variada e curiosa gente, toda ela com ânsia de saber a razão de tão grande chinfrim que fazia a curandeira. Mas logo ali tudo se esclareceu e se disse ao povo ignaro das nossas intenções benignas e humorísticas e delas também se fez ciente a proprietária do símio.

E tudo iria acabar em bem como vai ver-se. À hora aprazada, a música do Terço, o caloirame, duas tipóias dentro duma das quais ia a mulher da macaca, o padrinho da futura doutora, o António Mendes e o caloiro herói do rapto, que transportava uma enorme pasta de papelão bordada a fitas roxas, desceu em garrido e tumultuoso cortejo até ao Hotel Rainha.

E na varanda do primeiro andar deste velho estabelecimento se procedeu à cerimónia do doutoramento da bicha. Num discurso famoso pela graça, pela vivacidade, pela riqueza do humor, mais uma vez o António Mendes, meu condiscípulo querido, fez valer os seus altos méritos histriónicos.

À mulher da macaca foi entregue não só a pasta com as fitas como ainda cerca de trezentos escudos, as sobras que ficaram depois de saldados todos os nossos compromissos. E entre o riso de todos findou um dos grandes acontecimentos da minha vida académica e com ele findou também a presença atrevida e sacrílega dos curandeiros em frente da nossa Universidade.


[Esta história também é relatada, sob um ponto de vista ligeiramente diferente, em O Rapto da Macaca.]




[1] Emídio Guerreiro (Guimarães, 1899 - ibid., 2005) foi professor de matemática (assistente na Faculdade de Ciências do Porto em 1931, demitido por razões políticas, e professor em vários liceus parisienses depois da Segunda Guerra Mundial) e político (mação, participou na revolta de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, na Guerra Civil Espanhola, do lado republicano, na Resistência Francesa contra os nazis, foi um dos fundadores da Liga de Unidade e Acção Revolucionária em 1967, e foi secretário-geral do Partido Popular Democrático em 1975).

[2] A palavra "briosa" é frequentemente usada para designar a Academia de Coimbra, ou mais precisamente a Associação Académica de Coimbra (principalmente, depois dos anos 20, a sua equipa de futebol). Aqui é usada simplesmente para referir a academia, neste caso a do Porto.

[3] Trata-se do célebre filósofo Agostinho da Silva (Porto, 1906 - Lisboa, 1994).

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O Traje Académico em Coimbra
I - O Antigo Regime

Ao contrário do que possa pensar-se, a Universidade de Coimbra-Lisboa[1] não teve um uniforme instituído desde o princípio, nem para os estudantes, nem para os professores. Não significa isto, no entanto, que o seu vestuário não estivesse regulamentado, antes pelo contrário. Na Idade Média, e em parte até ao Liberalismo, o peso do gosto individual na forma de vestir era muito menor do que actualmente: a indumentária devia reflectir claramente o lugar de cada indivíduo na ordem social.[2] Assim, o vestuário dos elementos da Corporação Universitária tinha que espelhar de alguma forma a pertença a essa corporação. Havia, por um lado, diversas limitações oficiais a esse vestuário, de forma a torná-lo sóbrio, decente, e a impedir que colidisse com os privilégios e características próprias dos trajes de outros elementos da sociedade (certas cores e certos tecidos, por exemplo, estavam reservados a determinados estatutos sociais).

Nos Estatutos de 1431, D. João I mandou que
"magistri et doctores euntes ad legendum vel ad quoscunque allios actus scollasticos vel per modum universsi incedant in aparatu in generali sive doctoralli et legentes licenciati et bachalarii in habitu honesto ad minus tallari et ceteri scollares honesti saltim usque ad mediam tibiam";[3]
("os mestres e doutores indo a leccionar ou a quaisquer outros actos escolares ou [que estejam] dentro dos limites da universidade andem em aparato geral ou doutoral e os lentes [i. e., docentes] licenciados ou bacharéis em hábito honesto ao menos talar [i. e., até aos tornozelos] e os outros escolares [em hábitos?] honestos, pelo menos até à meia perna.")[4]

D. Manuel I, por volta de 1503,
"que os escolares [...] andem honestamente vestidos e calçados, scilicet [isto é] não tragam pelotes, nem capuzes, nem barretes, nem gibões vermelhos nem amarelos nem verde-gaio, nem cintos lavrados de ouro";[5]

D. João III, na Ordenança para os estudantes da Universidade de Coimbra, de 1539:
"[...] toda pessoa de qualquer qualidade e condição que seja que por bem de minha ordenação da defesa das sedas a pode trazer [...] a não possa trazer [...] enquanto na dita universidade estudar [...]
Nem poderão os sobreditos nem outros alguns estudantes trazer barras nem debruns de pano em vestido algum.
Nem isso mesmo poderão trazer vestido algum de pano frisado.
Nem poderão trazer barretes doutra feição senão redondos.
E assim hei por bem que os pelotes e aljubetas que houverem de trazer sejam de comprido três dedos abaixo do joelho ao menos.
E assim não poderão trazer capas algumas de capelo; somente poderão trazer lobas abertas ou cerradas; ou mantéus sem capelo.
Item não trarão golpes nem entretalhos nas calças. Nem trarão lavor branco; nem de cor alguma em camisas nem lenços";[6]

e D. João IV, nos Estatutos de 1653 (chamados Estatutos Velhos):
"1º-Os estudantes andarão honestamente vestidos, sem seda alguma: mas poderão trazer os chapéus e barretes forrados, e colares dos mantéus e guarnições de sotainas por dentro: e nas camisas não trarão abanos, senão colares chãos sem feitio de rendas, nem bicos, nem trancinhas, nem de outras guarnições semelhantes, sob pena de dous mil reais, pagos da cadeia, a metade para a Confraria, e a outra para quem o acusar. E não trarão em nenhum vestido de sotaina, calças ou pelotes, as cores aqui declaradas: amarelo, vermelho, encarnado, verde, laranjado, sob pena de perderem os ditos vestidos [...] E porém debaixo das sotainas poderão trazer gibões, ou jaquetas de panos de cores, para sua saúde: contanto que os colares não sejam mais altos que os das sotainas, nem as mangas mais compridas: e poderão outrossim, debaixo das botas ou borzeguins trazer meias calças de cores bem cobertas: e em casa, ou pelas ruas, onde pousarem, poderão trazer roupões de cores, contanto que não sejam das acima proibidas [...]
2º-Não poderão trazer barretes de outra feição, senão redondos, ou de cantos; nem carapuças, senão os que trouxerem dó, no tempo limitado, ou pelas pessoas que o podem trazer [...] E os mantéus, que houverem de trazer, serão compridos, ao menos até ao artelho.
3º-Não trarão capas de capelo cerrado, e trarão mantéus de colar ou de capelos abertos. Porém os criados de estudantes poderão ir ouvir às Escolas com pelotes e ferragoulos, e chapéus, e colares de abanos nas camisas, chãos, que não passem de dous dedos. E os estudantes pobres poderão trazer o mesmo trajo: tirando os colares das camisas de abanos.
4º-Não trarão golpes, nem entretalhos que se vejam em algum vestido, nem piques, golpes, botões ou fitas em botas, ou sapatos [...]".[7]

Por outro lado, a Universidade estava intimamente ligada à Igreja, era efectivamente uma instituição eclesiástica, e uma grande parte dos estudantes e mestres eram clérigos. É pois natural que os universitários adoptassem uma maneira de vestir eclesiástica. António Nunes (em "Subsídio...", págs. 405-406) dá-nos uma caracterização do vestuário dos estudantes de Coimbra nos séculos XVI e XVII:
"Loba ou Sotaina, decorada à frente, de alto a baixo, com uma fileira de pequenos botões, abotoada pelas costas com botões ou cordeis, a qual descia até à meia perna; uma Capa com gola e alamares ou cordão de borlas; um Barrete arredondado ou de cantos; Calção sem entretalhos ou golpes, meias e Botas ou Borzeguins. Os estudantes colegiais [8] traziam os Hábitos das respectivas Ordens, salvo os dos Colégios seculares de S. Pedro e S. Paulo que tinham um Hábito semelhante aos escolares colegiais de Salamanca [...]. Este Trajo usado nas Faculdades também era extensivo aos Lentes, ressalvando-se apenas o pormenor de a Sotaina dos Mestres chegar ao calcanhar, enquanto a do estudante chegava à meia perna. Através dos Estatutos de 1653, dados por D. João IV, ficamos a saber que nesta época ainda se usavam barretes redondos ou de cantos para cobrir a cabeça e não o Gorro comprido, o qual se começou a trazer mais tarde, talvez nos começos do século XVIII. Estes Estatutos conferem ao estudante liberdade para trazer debaixo da Batina coletes e camisas, só mais tarde se tornando obrigatório o costume de envergar Volta Branca e Cabeção Negro [...]."

As lobas dos colégios eram de cores variadas (dentre as que não eram proibidas, claro): em Todos os Santos usavam o pardo, em S. Miguel roxo escuro, em S. Paulo castanho escuro, etc. Mas o preto viria a dominar.[9]

Pormenor de uma gravura holandesa (de George Braun & Franz Hogenborg) de 1572, sobre Coimbra. Parece representar dois escolares – estudantes ou professores. Será o único documento iconográfico sobre o traje académico de Coimbra no século XVI. (Extraído de António Correia, “Subsídios para o estudo do trajo dos estudantes de Coimbra”, Rua Larga, n.º 5 (16/10/1957), pág. 133).

Desta forma, no seu início, o objectivo principal do Traje Académico, não era, como muitas vezes se diz, igualizar os estudantes, mas antes fazer distinguir os académicos na sociedade.[10] A igualização entre estudantes acontecia (até certo ponto) porque, vindo estes de estatutos sociais (isto é, lugares na sociedade) diversificados, deviam convergir na posição académica.

Apesar da falta de uniformização, os estudantes eram obrigados a usar alguma forma de traje académico.[11] De notar que essa obrigatoriedade era permanente, nas aulas ou fora delas, dentro da cidade de Coimbra (território académico).[12]

É possível que no início do século XVIII a maioria dos estudantes (não colegiais) já tivesse convergido para uma mesma forma de traje académico - embora essa forma estivesse dependente de flutuações de moda. Isto é o que se depreende de uma passagem de António Ribeiro Sanches, estudante em Coimbra de 1716 a 1719, nos "Apontamentos para fundar-se uma Universidade Real" (1761):
"até o ano 1718, o vestido dos estudantes da Universidade de Coimbra era uma loba de baeta com capa, que custava 7200 r. até 9600 r. Neste ano veio de Lisboa a moda da abatina, e vem a custar este vestido de crepe ou de pano de 25000 r. até 30000 r."[13]
Qual a diferença entre a loba com capa e a abatina? Segundo o Vocabulario Portuguez e Latino (10 vols., 1712-1728) do P. Rafael Bluteau, a loba era uma
"Vestidura eclesiástica, clerical e honorífica, que chega até o chão, cortada de maneira que nela entram os braços; dela usam também os bedeis da Universidade [...]"
e
"Andar à Abatina. É andar no trajo dos abades seculares de França ou de Itália, com vestido de seda negra, capa curta, volta singela e cabeleira pequena."[14]
Estas descrições não serão muito esclarecedoras, mas parecem sugerir: 1 - que a loba seria mais comprida, mas a abatina de tecido mais caro; 2 - que a abatina foi inicialmente uma moda de influência estrangeira, e mais precisamente de além-Pirinéus. Note-se além disso que a abatina não era uma peça de vestuário, mas sim uma forma de vestir, que incluía uma capa e um vestido que mais tarde se chamaria túnica; ainda mais tarde, esta túnica chamar-se-ia "batina", por simplificação de "abatina".

Segundo António Nunes,
"a loba era uma veste acentuadamente comprida, constituída por dois corpos sobrepostos [...]
A sotaina interna, ou veste talar de baixo, comporta[va] mangas e sistema de abotoadura dianteiro em trespasse. A veste exterior, também conhecida por chamarra, chimere, zimarra, garnacha, [era] uma toga de mangões fendidos [ou despojada de mangas], estolas frontais e cabeção dorsal alongado, podendo comportar debruns variados. [...]
Grande parte do seu peculiarismo radicava no formato cónico da sotaina, que era de enfiar pela cabeça. Para que a entrada e saída da cabeça e dos braços ocorresse sem obstáculos, a sotaina alargava muito dos ombros para a meia perna, sendo ajustável no colarinho graças a um dispositivo de cordões semelhante ao do corpete que era aplicado na zona da coluna vertebral."[15]

Em 1772 a Universidade de Coimbra sofreu uma importante reforma (Reforma Pombalina), tendo recebido novos Estatutos. Os Estatutos de 1772 eram, no entanto, incompletos - (re)organizavam as faculdades, mas pouco diziam sobre a organização central da universidade; e por uma Carta Régia de 5 de Novembro de 1779 ficou explícito que os Estatutos Velhos de 1653 continuavam em vigor naquilo em que não tivessem sido revogados. Assim, sobre o enquadramento legal do traje dos estudantes, pouca ou nenhuma novidade. Os novos Estatutos apenas referem que, para se matricular,
"se apresentará cada Estudante em sua própria pessoa, vestido de hábito de Estudante, que seja decente" (Livro II, Título I, Capítulo IV, §39).
Não há normas legais sobre como deveria ser este hábito de estudante, mas existe uma descrição, pouco posterior, dos seus constituintes habituais. Na edição de 1791 da Macarronea Latino-Portuguesa (o conjunto de textos conhecido como Palito Métrico), vem incluída a "Economia Escolástica - segunda parte do Sábio em Mês e Meio", de António Castanha Neto Rua, que acerca do Traje Académico diz entre outras coisas o seguinte:
"Todo o cidadão que se condecora com o título de homem de bem, para decentemente aparecer no meio dos outros, carece para seu adorno externo, [...] enquanto estudante, de Verão, de sete [cousas], vem a ser:- cabeção, volta, camisa, batina, meias, sapatos, e fivelas; e de Inverno, de nove, porque entram calções e colete, que de Verão são inteiramente desnecessários."[16]
Segundo o Diccionario da Lingua Portugueza de António Moraes Silva (2 vols., Lisboa, 1789) "batina" era como o vulgo chamava à abatina, e esta era um "vestido de abade, ou clérigo secular, consta[ndo] de túnica, e capa talar mui fraldada". Quanto a "túnica": "vestidura talar, chegada ao corpo, e por baixo de capa".[17]

Sendo a túnica da batina descrita como talar, ou seja até ao calcanhar, deduz-se que era bastante mais comprida do que a actual batina. O facto de os calções serem dispensáveis sugere o mesmo. No entanto, no caso dos estudantes, é possível que não fosse rigorosamente talar - ou melhor, é natural que fosse um pouco mais curta do que a capa, já que, ainda na "Economia Escolástica", se lê: "Reprovo-lhe meias de seda, pois com o roçar da capa vão-se em dous dias"[18] - o roçar da capa, não da (túnica da) batina.






[1] Ou seja, a a universidade que foi fundada em 1288/1290 em Lisboa, transferida em 1308 para Coimbra, em 1388 de novo para Lisboa, em 1354 outra vez para Coimbra, em 1377 para Lisboa, onde esteve um longo (!) período de 160 anos e que ficou definitivamente instalada em Coimbra a partir de 1537.

[2] Cf. Léo Moulin, A Vida Quotidiana dos Estudantes na Idade Média, Lisboa: Livros do Brasil, 1994, págs. 44-46.

[3] Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1991, pág. 16; também citado em Maria Teresa Nobre Veloso, "O Quotidiano da Academia" (in História da Universidade em Portugal, I volume, tomo I, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, págs. 129-151), pág. 134.

[4] Em Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, pág. 17, aparece a seguinte tradução desta passagem, da responsabilidade do Prof. Doutor Monsenhor Cónego José Geraldes Freire, catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra:
"os mestres e doutores, quando vão para dar as suas lições ou para quaisquer outros actos escolares sigam, segundo o costume da Universidade, com o traje dos mestres ou dos doutores; e os licenciados e bacharéis que leccionarem, com traje honesto, pelo menos talar; e os restantes escolares honestos, ao menos até à meia tíbia".
Não tenho grande competência como tradutor de latim medieval mas, ressalvando a minha ignorância, atrevo-me a achar esta tradução um pouco livre e a usar no texto principal uma outra da minha autoria, feita quando ainda não conhecia esta. Vejo apenas duas diferenças significativas: "per modum universsi" creio poder significar quer "segundo o costume da Universidade" quer "dentro dos limites da universidade", e prefiro a segunda apenas para explicar o "vel" (= ou); "in aparatu in generali sive doctoralli" é mais complicado – traduzir "generali" por "dos mestres" parece-me de facto demasiado livre, pelo menos para os efeitos deste texto. De qualquer forma ficam-me dúvidas sobre esta passagem, que a mim parece indicar que os doutores e mestres podiam usar luxo não académico ("geral") ou, em alternativa, doutoral. Não parece haver quaisquer dúvidas sobre a secção final, que estipula que os licenciados, os bacharéis e os estudantes não graduados deveriam usar roupa sóbria ("honesta"), com os comprimentos indicados.

[5] Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, pág. 34; também citado em Maria Teresa Nobre Veloso, "O Quotidiano da Academia", pág. 134.

[6] Ordenança pera os estudãtes da universidade de Coymbra, reedição fac-similada comemorativa do IV Centenário do estabelecimento definitivo da Universidade em Coimbra, s.l. [Coimbra?], s.d. [1937?]. Também citado por Manuel Cabral e Rui Marrana, Quid Praxis? (Portucalensis), Porto: Associação de Estudantes da Universidade Católica Portuguesa no Porto, 1982, pág. 52; e por Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra 1537-1990, Lisboa: Rei dos Livros, 1990, pág. 649.

[7] Estatutos da Universidade de Coimbra (1653), edição fac-similada, Coimbra: por ordem da Universidade, 1987, pág. 139. Também citado por António Nunes, "Subsídio para o estudo genético-evolutivo do Hábito Talar na Universidade de Coimbra" (in Universidade(s) - História, Memória, Perspectivas, vol.3, Coimbra, 1991, págs. 399-419), pág. 407; e por Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra, pág. 649 e seg.

[8] Isto é, os que viviam nos Colégios, espécie de Residências, normalmente pertencentes a ordens clericais.

[9] António de Oliveira, “O Quotidiano da Academia”, (in História da Universidade em Portugal, I volume, tomo II, Coimbra: Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, págs.617-692), págs. 643-644.

[10] Existiam outras formas de distinção, como o Foro Académico: os universitários (incluindo os funcionários e todos os que trabalhassem para a Universidade) estavam fora da alçada das autoridades comuns. Tinham tribunais, cadeia e mesmo polícia (os verdeais) próprios.

[11] António de Oliveira, “O Quotidiano da Academia”, págs. 642-643.

[12] Lamy, Academia de Coimbra, pág. 653.

[13] António Nunes Ribeiro Sanches, Obras, vol. I, Coimbra: por ordem da Universidade, 1959, pág. 158 (estes "Apontamentos...", datados de Paris, 17 de Julho de 1761, foram publicados originalmente em 1763 junto com o Método para aprender e estudar a Medicina). Esta passagem é também citada por Lamy, Academia de Coimbra, pág. 651. Na Universidade Real (por oposição a eclesiástica) que Ribeiro Sanches propunha, "todos os Magistrados, Lentes, Leitores, Estudantes internos e externos [andariam] vestidos da mesma sorte", com a única diferença de uma insígnia ("uma marca no vestido, como uma meia estola, de cores diferentes") pela qual se distinguiriam; e todas as peças de vestuário e afins seriam de fabrico nacional - Ribeiro Sanches criticava os enormes gastos dos estudantes de Coimbra neste campo, nomeadamente em artigos estrangeiros.

[14] "Loba" aparece no vol. V (1716), pág. 168; "Abbatina" no vol. I (1712), pág. 20.

[15] Cf. as entradas O hábito talar e as insígnias de Bernardino Machado (cont.) - Percursos do Hábito Talar em Coimbra, Porta-Maças da Catedral de Peterborough e Santo Ovídio "Doutor" do blogue Virtual Memories. António Nunes defende que a substituição da loba pela batina no traje dos estudantes de Coimbra se deu apenas depois das reformas liberais de 1834 - e ainda um pouco mais tarde no caso do traje dos doutores. Não estou convencido disso (devido ao testemunho de Ribeiro Sanches e ao que veremos a seguir), mas ressalve-se que: 1 - um relato de um viajante alemão, Heinrich Friedrich Link (1767-1851), que esteve em Coimbra em Maio de 1798, parece de facto descrever o traje dos estudantes e professores como constituído por loba (sem capa?); e 2 - um edital de 1843 utiliza ainda a palavra "lobas".

[16] Palito Métrico e correlativa Macarrónea Latino-Portuguesa, nova edição de harmonia com a quarta, de 1792, Coimbra: Coimbra Editora, 1942, pág. 384.

[17] A loba parece que era já antiquada: "Vestido escolástico antigo, consta de túnica aberta que sobrepõe por diante, sem mangas, e de uma capa talar".

[18] Palito Métrico, pág. 385.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Douta Assembleia dos Capelos

[José Souto Teixeira, Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 19]


A corresponder ao pedido dum velho companheiro da minha geração académica, cá estou a escrevinhar qualquer coisa, como se fora uma página de memórias dos bons tempos em que frequentei a nossa Universidade.

Para ela entrei, já lá vai mais de uma quarentena de anos[1], pode dizer-se, pelo braço do Modesto Osório que tão vincadamente marcou a sua personalidade como regente da Tuna Académica e que todos os do meu tempo recordam com respeito e saudade. Frequentávamos ambos o Liceu de Viseu. Lá tinhamos a nossa Tuna. Ele o regente, eu o chefe dos violões. Cursava o sétimo ano quando Modesto Osório me escreveu um postal do Porto onde dizia: «não vás para Coimbra; foge dos «canelões» e das «troupes»; aqui sou caloiro e regente da Tuna; os violões são fracos e aqui fazes um figurão».

Segui o conselho e numa fria noite de inverno, de banza ao tiracolo, cheguei ao Porto e quando Modesto Osório me encaminhava para uma pensão da Rua dos Caldeireiros, fomos, ao dobrar duma esquina, cercados por um grupo de embuçados.

Que biltre, este Modesto Osório, pensei com os meus botões!... E dizia-me que no Porto não havia «troupes» e prega-me esta partida!... Insultei-o. «Cala-te, disse-me em surdina, em tom enérgico mas um tanto apavorado. São os «trauliteiros». Não nos fizeram mal mas não ganhei para o susto.[2]

A primeira aula a que assisti foi a de Química Inorgânica, regida pelo Conselheiro José Arroio. Ainda o estou a ver no seu fraque impecável, a sua pêra grisalha, com dois pares de lunetas de vidros muito espessos cavalgando no nariz, escrevendo fórmulas químicas com giz envernizado para não sujar as mãos.

A seu lado, o preparador Aprígio Dantas, de esponja em punho pronto a apagar, a um sinal do mestre, o que no seu quadro se tornava desnecessário. O tempo tornou-me admirador do Conselheiro e amigo do Dantas, esta figura incomparável que o Zeferino, no «Porto Académico» de 1938, assim retratou: «baixo, muito gordo, cara rapada, com uma cicatriz no lábio superior produzida por queimadura de qualquer ingrediente químico, o Dantas, que a todos tratava por tu, gozava duma propriedade: dormia de pé».

O ano tinha corrido agitado. O tifo exantemático, a pneumónica, as greves, as consequências sociais e políticas que sucederam à primeira guerra mundial, pertubaram os trabalhos escolares e o Conselheiro Arroio só conseguira, do programa, dar os metalóides e dois únicos metais: o ferro e o alumínio. Nas vésperas dos actos[3], o bom do Dantas avisou os alunos que era da praxe ir a casa do Mestre pedir benevolência. Desgraçado aquele que o não fizesse. Eu era o último a fazer exame e todos os que me antecederam seguiram o conselho do Dantas. E assim, na véspera do primeiro exame que is fazer na Universidade, meti-me no eléctrico e lá fui até à Foz, a casa do Mestre.

Recebeu-me no cimo da escada, embrulhado num roupão de seda. Já com a porta da rua aberta e quando fazia a vénia final da despedida, o Mestre diz-me lá de cima: Oiça lá, creio que durante o ano só fizemos o estudo de dois metais, mas não me lembro quais. Respondi-lhe: o senhor Conselheiro deu o ferro e o alumínio, mas não tem feito perguntas sobre eles nos exames já feitos. O Mestre sorriu-se e retorquiu: não tenho feito perguntas sobre esses metais por esquecimento, mas de futuro não me esquecerei. Saí radiante. O Mestre simpatizara comigo e indirectamente tinha-me dado o ponto para o exame.

Vim para o quarto e toda a noite só estudei o ferro e o alumínio. Chegou o exame. Uma hora decorrida e o Mestre só me tinha feito perguntas sobre os metalóides. No final do acto, disse-me: «Está terminado o seu exame; não lhe fiz perguntas sobre os metais porque tenho a certeza de que o senhor os estudou toda a noite». E tinha acertado, mas nos exames sequentes – química-qualitativa e química-física – tomei as devidas precauções.

Os tempos corriam agitados nos primeiros anos em que frequentei a Universidade. Entrei para a pensão da Rua dos Caldeireiros a pagar vinte escudos por mês e pouco mais de um ano decorrido pagava oitenta. A situação, por vezes, para os comensais da pensão, quase todos estudantes, tornava-se aflitiva em face do rápido aumento do custo de vida. Enquanto uns iam pagando como podiam, ou pediam moratórias, outros pagavam em géneros que tinham escondidos nos quartos debaixo das camas, arranjados a preço baixo ou gratuitamente quando o povo amotinado assaltou os armazéns dos açambarcadores.

E sucedeu o inevitável. A pensão rebentou e, quando num dia ansiosamente esperávamos o jantar, o dono da pensão veio ter connosco e disse: «Não lhes posso dar hoje de comer»; e, dando a cada qual vinte e cinco tostões, continuou: «Com este dinheiro, o dinheiro do jantar, podereis ir comer aonde quiserdes». Assim foi, fomos todos para um tasco da Rua de Trás e jantámos castanhas assadas regadas com bom vinho verde. Foi, talvez, a refeição de toda a minha vida de que guardo mais grata recordação.

Estoicamente enfrentámos a realidade e resolvemos fundar uma «República». Descobrimos um estupendo colaborador na pessoa do Sr. João Loureiro, galego de origem, dono duma casa de comidas e bebidas num rés-do-chão, na Rua de S. João Novo, em frente do velho Tribunal. Fundou-se assim a «Douta Assembleia dos Capelos», que se manteve durante uns três anos, regida por «Constituição» própria a que todos deviam cega obediência. Os iniciados admitidos eram sujeitos a duras provas.

À volta da «Douta» girava toda a vida académica do Bairro: ruas das Taipas, do Calvário, S. Miguel e Belomonte. A população associava-se às nossas festas, principalmente quando um de nós era feliz no exame feito ou da parvónia chegava, dos pátrios lares, pitéu de respeito. Cada grande festa era seguida de baile. Tudo tinha entrada – pax intrantibus – principalmente as raparigas. E quando a casa não chegava, bailava-se na rua. Lembro-me, duma vez, que entre elas estava a filha do regedor da freguesia que morria de amores por um «douto». De súbito, – no auge da festa, entra o regedor com ar imponente e autoritário e prega uma bofetada na filha.

E enquanto a rapariga, em altos gritos dizia: – «Bata, meu pai, que o amor batidinho é quanto sabe melhor», – armou-se tal zaragata que alvoroçou todo o bairro. Entram na liça alguns «futricas»[4] despeitados, ouvem-se apitos e a polícia dificilmente conseguiu serenar os ânimos. Tudo dispersou, mas pouco depois, um polícia, o «111», quando alguns de nós pretendiam fazer uma serenata ante a casa do regedor, prendeu-nos a todos. Obedientes, lá fomos parar à esquadra da Bolsa. O chefe, uma excelente criatura, deu-nos minutos depois a liberdade. Protestámos. Só a aceitávamos e estávamos decididos a não abandonar a esquadra, mesmo à força, a não ser que o «111» nos pedisse desculpa. O chefe estava um tanto embaraçado, tanto mais que se estavam juntando, em frente da esquadra, bastantes populares.

O «111», ante a feição que os acontecimentos estavam tomando, pediu-nos desculpa. O chefe fez que não percebeu e deu-nos as boas-noites e conselhos. Alguns dias depois, o «111» foi convidado de honra da «Douta». Comeu-se e bebeu-se bem e a alegria reinou. O «111» apresentou-se à paisana, ficou nosso amigo sincero e pediu que o não metessem em sarilhos quando estivesse de giro no bairro, porque «ordes» são «ordes» para se cumprirem.

A «Douta» também era considerada entre a Academia. A ela pertenciam, em determinado ano, o presidente da Associação dos Estudantes, o director do jornal académico do tempo e um dos dirigentes da Tuna. Por outro lado, a «Douta» sempre se associava a qualquer iniciativa popular das gentes do bairro, nas comissões para as festas do S. João, festas de caridade para socorrer um necessitado ou qualquer outra iniciativa. Por todos era olhado com respeito aquele «grupo de almas gémeas e irmãs», ao qual o primeiro «douto» que dela saiu, o António Fernandes, de Vinhais, ofereceu a sua tese de doutoramento e os seus actos de altruísmo e humanidade muito nos honravam e desvaneciam.

Fiel a estes sentimentos estava no pensamento de todos socorrer os infelizes e infelizes eram os inofensivos animais que a empresa do Palácio de Cristal mantinha em jaulas no seu jardim, para gáudio da pequenada e admiração dos basbaques: uns vinte ou trinta macacos, um porco bravo e dois faisões.

Chegou o momento de actuar. Reuniu-se no restaurante do Palácio um V ano médico, em festa de confraternização e despedida. A «Douta» foi convidada para a festa. O jantar terminou já noite adiantada. Os da «Douta» resolveram discretamente abrir as jaulas dos animais. Estes preferiram, de momento, o sono à liberdade. Porém, de manhã, havia grande alvoroço para os lados do Palácio. Os macacos eram por toda a parte, o povo ria às gargalhadas com as momices dos libertados, vieram os bombeiros e o caso até foi falado nos jornais. O javali mais uma vez provou a pouca inteligência com que são tidos os da sua raça. Não tinha saído da toca. Os faisões, porém, um prateado e outro dourado, nunca mais foram encontrados. Foram libertados de vez do seu martirizante cativeiro.

O espírito de amizade e solidariedade que existia na D. A. C. acompanhou-nos pela vida fora. Alguns já lá vão e o primeiro a partir foi o mais jovem de todos, o João Ribeiro. Enterre-se o passado com piedade e demos à saudade o que é do tempo, como disse o grande Antero.

O último exame que fiz, ou melhor, que tentei fazer na Universidade, foi com Mestre Bonifácio. Foi a única desistência, ou melhor, reprovação que tive na minha vida académica. Do Mestre Bonifácio contavam-se, no meu tempo, muitas anedotas. O seu tom de voz inconfundível, a sua lealdade, o seu aprumo e o seu saber marcavam em todos os seus alunos um sentimento de respeito. Creio que todos os exames de geometria analítica[5] dos seus alunos, e podem contar-se por milhares, principiavam invariavelmente com a frase: trace a Linha-Terra. Só duma vez me sorri quando ele disse a um meu condiscípulo que examinava: ponha essas rectas mais paralelas...

Depois de ter cursado em duas faculdades e ser assistente duma delas, resolvi, um tanto por diletantismo, frequentar as cadeiras de Geometria Descritiva e Mecânica Racional, ambas regidas por Mestre Bonifácio. Na Descritiva a coisa não correu mal. Presidia ao acto o assistente Queirós. E enquanto Mestre Bonifácio com ele conversava, e de costas voltadas para mim, o examinando, fui lentamente traçando a Linha-Terra. Mestre Bonifácio volta-se e diz-me, com voz de trovão: «Quem lhe mandou fazer esse risco? Nos meus exames o carro não anda diante dos bois...» Apaguei o risco. «Vamos principiar o exame – diz Mestre Bonifácio –, trace a Linha-Terra.

Porém, um ano depois, apresentei-me a acto de Mecânica. Foi um fracasso. Para tal concorreu, talvez, a má disposição momentânea do Mestre e o facto de me ter estendido nas equações de Lagrange. A certa altura do exame, o Mestre diz-me com sisuda carantonha, que lhe era tão peculiar: «Desista do seu exame e venha cá na próxima época; o senhor merece um dez, mas como tem responsabilidades nesta casa deve cá voltar de novo mas mais bem preparado».

Alguns dias depois, o João da Biblioteca veio dizer-me que Mestre Bonifácio me queria falar. E quando o procurei disse-me afavelmente: «O senhor não sabe nada de cálculo; estou pronto a dar-lhe algumas lições». Agradeci-lhe mas nunca mais o procurei, não sei bem porquê, talvez por timidez ou porque novos rumos orientassem a minha vida. Alguns anos decorridos, já Mestre Bonifácio, segundo creio, estava jubilado, encontrei-o casualmente e, quando cerimoniosamante o cumprimentava, disse-me secamente: «Afinal nunca cheguei a ensinar-lhe a integrar». Desculpei-me um tanto confuso e nunca mais o vi.

Eram assim os mestres do meu tempo. De todos guardo grata recordação. A eles devo o que tenho sido na vida. Quase todos já lá vão. Que os que cá estão ainda, somente dois, me continuem olhando com a simpatia com que sempre me distinguiram.

Lisboa, 6-12-61.




[1] Isto é, antes de 1922. Por uma referência abaixo aos trauliteiros, é de supor que o autor tenha chegado ao Porto em 1919.

[2] Não é claro no texto, mas convém esclarecer: os trauliteiros não eram um grupo académico, e sim bandos de arruaceiros ligados à revolta monárquica de 1919 (conhecida como Monarquia do Norte ou Reino da Traulitânia).

[3] "Acto" ainda tinha o significado de exame.

[4] "Futrica", na gíria académica de Coimbra, designava alguém que não é estudante. Como se vê aqui, o termo chegou também ao Porto.

[5] Deve ser gralha. Estes exames deveriam ser de Geometria Descritiva. Em Geometria Analítica não há linha de terra.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Capa e Batina: a roupa do estudante

[A primeira versão deste texto, com o nome "A Capa e Batina - O Símbolo da Universidade", foi publicada no Guia do Caloiro da AEFCUP de 1994; a versão aqui reproduzida apareceu no Guia do Caloiro de 1998, mas infelizmente com um sério erro de edição: desapareceu uma linha, alterando consideravelmente o sentido de uma frase; essa linha foi aqui reposta. O texto deve ser lido tendo em atenção que se destinava essencialmente a caloiros e em particular aos da Faculdade de Ciências. Resisti à tentação de reescrever algumas partes, mesmo as que necessitariam de uns ajustes gramaticais.]


Muitas vezes, quem vê uma Capa e Batina pela primeira vez fica convencido que aquilo é uma roupa de cerimónia e de luxo, extremamente elitista. Nada mais falso. A Capa e Batina é para ser usada em (quase) qualquer situação (na praia não dá muito jeito); pode, também, ser usada como roupa de gala em certas condições (v. abaixo). Normalmente é para usar com simplicidade como uma roupa do dia-a-dia que é. A sua ideia é ser uma roupa para qualquer estudante, independentemente do poder económico (é barata considerando a qualidade e as vezes que se pode usar) e da altura do ano: se chover traça-se a capa, se fizer sol, tira-se o colete e põe-se a capa ao ombro, etc. A capa dá muito jeito para abrigar do frio da madrugada quando se volta a casa de uma noite de boémia, e eventualmente também para abrigar outras pessoas (o que pode ser bastante interessante).

É provável que ouças muitas regras sobre o uso do traje. Não podes fazer isto, tens que fazer aquilo, aqueloutro tem que ser em número ímpar, etc., etc., etc. A maior parte dessas regras são invenção de gente que não tem mais nada que fazer. Como distinguir as regras a mais das que têm fundamento? É com certeza muito difícil para um caloiro (até mesmo para a maior parte dos doutores). O que é preciso é ter bom-senso, perguntar a várias pessoas, combinar as várias respostas e tentar seguir as que pareçam ser mais tradicionais e fazer mais sentido dentro do espírito académico e praxístico. Ninguém disse que a Praxe era uma coisa imediata, embora muita gente pareça agir assim.

Mas pode-se dar já algumas ideias gerais. Fundamentalmente, o traje académico é para ser usado com sobriedade. Por exemplo, não há qualquer regra sobre tamanhos de brincos, mas já se sabe que não são admissíveis brincos que dêem demasiado nas vistas; brincos discretos não trazem problemas. Objectos de luxo em geral estão postos de parte.

Há também questões de boa educação e de bom gosto no uso do traje académico: por exemplo, é de má educação não ter a capa pelas costas em alguma ocasião um pouco mais solene, e demonstra uma certa dose de parolice ter a capa sempre muito dobradinha ao ombro, mesmo que esteja a chover ou um frio de rachar, mostrando uma quantidade de emblemas comprados na esquina, como quem diz: "sou muito académico porque tenho muitos emblemas".

Mas para quem gosta de regras, mesmo, leiam o seguinte. Nalgumas coisas há opiniões diferentes, mas em geral se seguirem estas indicações não devem ter problemas. Algumas não são regras em si mesmas, mas aplicações particulares de regras gerais, que mudam se as condições particulares mudarem. Agora, por amor de Deus (Baco), não tentem interpretar as vírgulas!


Traje Académico Masculino
:

- Capa preta;
- Batina preta de formato não eclesiástico;
- Calças pretas;
- Colete preto (dispensável em caso de muito calor);
- Gravata preta;
- Camisa branca com colarinhos normais;
- Meias pretas;
- Sapatos pretos de formato simples;
- Gorro preto (facultativo), sem borla e sem terminar em bico.

A batina deve ter um botão na parte de trás da lapela direita (e a casa correspondente na outra), para fechar em caso de luto.
Há uma versão de gala, com colarinhos de bico e laço preto em vez de gravata.


Traje Académico Feminino
:

- Capa preta;
- Casaco preto;
- Saia preta travada;
- Gravata preta;
- Camisa branca;
- Meias pretas;
- Sapatos pretos de formato simples;
- Gorro preto (facultativo), sem borla e sem terminar em bico.

Há divergências quanto à cor das meias: é, no entanto, unanimemente aceite que as orfeonistas usem meias cor de pele.
Não existe versão de gala.


Quando se usa a capa pelas costas, esta deve ter algumas dobras no colarinho. Há quem indique o número correspondente ao ano do curso em que se está, mas não se preocupem muito com isso.

A capa deve ter colchetes no colarinho, para apertar em caso de luto. Há quem diga exactamente o contrário, mas parece-nos, analisando as suas razões, que esta é a opinião mais correcta dentro do espírito tradicional.

Há quem diga que à noite a capa deve ser traçada ou, pelo menos, estar pelas costas. Numa serenata, tem absolutamente que estar traçada. Em qualquer ocasião de maior solenidade ou em que se deve mostrar respeito, a capa deve ser usada pelas costas e (embora menos importante), a batina apertada.

Na Missa, a capa põe-se pelas costas, sem dobras (mas não com os colchetes apertados).

Há muitas tradições diferentes relacionadas com os rasgões na capa. O fundamental é que se refiram a coisas muito importantes e que são feitos com os dentes (nada de tesouras!).

Pode-se ter emblemas cosidos no lado de dentro da capa, na parte inferior esquerda, desde que não se notem os pontos do lado de fora, nem os próprios emblemas quando a capa estiver traçada ou pelas costas.

Considera-se que os emblemas se devem referir a aspectos importantes da vida académica, ou muito importantes da vida pessoal. Por exemplo, um sítio onde se foi em digressão de algum organismo académico (se a ida foi mesmo académica), mas não um sítio onde se foi no Verão, de Interrail.

Os emblemas deviam ser, em princípio, isso mesmo: emblemas. Não exagerem nos "penduricalhos"! Em particular os grelos, nabiças, etc. na capa são dispensáveis.


Insígnias:


- semente: usa-se (só) nos cursos de cinco anos, durante o segundo ano. É uma fita pequena de algodão, com um nó, presa por um alfinete ao bolso superior esquerdo da batina ou casaco.

-nabiça: usa-se no segundo ano dos cursos de quatro anos, e no terceiro nos cursos de cinco. É uma fita pequena de algodão, com um laço, presa por um alfinete ao bolso superior esquerdo da batina ou casaco.

- grelo: usa-se no terceiro ano dos cursos de quatro anos e no quarto nos cursos de cinco. É uma fita de algodão que circunda a pasta onde esta dobra para fechar, terminando em laço.

- fitas: usa-se no último ano de qualquer curso. São oito fitas de seda dispostas ao redor da pasta.

(Nota: estes anos referem-se aos anos do curso e não ao número de inscrições. Há casos em que é difícil calcular o ano em que se está, mas apelamos ao bom senso).

Todas estas insígnias se colocam na Imposição de Insígnias da Queima das Fitas do ano anterior ao respectivo (se se calcular que se vai passar de ano). Obviamente só se usa insígnias (excepto cartola e bengala) estando de capa e batina.

Também se considera como insígnia a cartola e bengala, que se usa durante a Queima das Fitas em que se é finalista. Com a cartola e bengala os homens usam um laço e as raparigas uma roseta na lapela.

A cor de todas as insígnias é a da faculdade respectiva (no nosso caso azul claro).

As insígnias devem ser recolhidas à noite (normalmente exclui-se da obrigatoriedade a Queima e as Serenatas Monumentais).

Só se usam insígnias entre o início oficial do ano lectivo e a Queima das Fitas.

Não se usam insígnias fora do Porto (enfim, Grande Porto).

João Caramalho

P.S.: Antes que ouçam asneiras: os caloiros podem e devem usar traje académico e podem traçar a capa.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Rapaziadas

[Artur da Cunha Araújo, Porto Académico, n.º único de 1938, págs. 3-4]


O “Central” e o “Chaves” eram os cafés preferidos pela Academia do meu tempo. No último, durante muitos anos instalado nos baixos do Hotel Francfort, entre o Laranjal e a rua de D. Pedro, bairros antigos que a Avenida do “bacalhau” fez desaparecer, juntavam-se quase todos os rapazes da Escola Médica em algazarra viva, a saborear o café da uma hora.

Havia um grupo de jogadores de xadrez com mais ou menos tineta para os intrincados lances do jogo espevitador por excelência da “substância cinzenta” e outro que preferia adestrar-se nas subtilezas das bolas a recuar e à massé, orientado pelo marcador, o “João do Lisbonense”, profissional aprumado e discreto, que já na casa dos setenta, ainda exibia as suas habilidades bilharistas.

Entre os habituais frequentadores do café do Chaves, figuravam comerciantes, empregados bancários que ali vinham de fugida sorver a goles apressados o moka rescendente e um ou outro janota de menos afazeres que procurava na convivência com estudantes um certo ar de intelectualidade.

Pertencia ao número destes últimos o sr. Guimarães, o homem mais bonito do Porto, como ele próprio se intitulava, perfeito “Don Juan” que só muito mais tarde teria competidor no sr. Cunha da Rasa. Aprumado nos seus fatos talhados pelo “Laranjeira”, com umas barbas bem cuidadas e que ao tempo faziam as delícias das costureiras dos “Hermínios” e do “Abel Brandão”, de botoeira sempre florida e um precioso chapéu à Rembrandt colocado com elegância, o “Cristo” como os rapazes lhe chamavam, fazia diariamente a “volta dos tristes” com a desenvoltura de um autêntico Brumell, a que não faltava sequer a nota arqui-mundana de umas irrepreensíveis polainas brancas.

Ora sucedeu uma vez que um estudante dos que mais de perto com ele conviviam, por necessidade de satisfazer qualquer inadiável compromisso, se abalançou a pedir-lhe uns cobres emprestados.

Solicitamente o nosso Cristo acedeu e ficou aguardando o prometido reembolso dentro do prazo estipulado. Os meses porém foram-se passando, o prazo findara há já bastante tempo e o rapaz nada de saldar a dívida. Invariavelmente o sr. Guimarães lá estava na porta do Chaves à hora marcada, mas o estudante é que jogava de porta com ele, evitando com astúcia o desagradável encontro.

Até que um dia fomos descortiná-lo cabisbaixo e sumido a um canto, receoso de ser abordado pelo impertinente credor.

Indagámos das causas de tamanha tristeza e logo ali se combinou a maneira de o libertar daquele pesadelo. Rabiscámos a lápis nas costas de um cartão do interessado um sonetilho de improviso que pouco depois, quando o Cristo apareceu, um criado reverente lhe foi entregar dentro de vistosa salva. Rezava assim:
Ò meu Cristo, ò meu senhor,
Redentor de nossos pais,
Só Te peço, por favor,
P’ra não me chateares mais.

Nem andes morto e exangue
Dos cafés, pelos portais,
A derramar o Teu sangue,
Por causa destes pardais...

Eu bem sei que És generoso,
Que um erário fabuloso,
Esgotaste até ao fundo...

Mas já que os justos apontas,
Bem sabes que as nossas contas,
Se pagam... no fim do mundo!...

O Cristo leu, releu, esboçou um sorriso tocado de leve azedume e saiu em direcção da Praça, guardando no bolso do colete, por saldo de contas, o bilhetinho. E nunca mais importonou o rapaz.


II

Entre os alunos do meu curso, destacava-se, não por ser oriundo de “San Tomé” mas pelo brilho
da inteligência e do espírito, o Luiz Gonçalves de Sousa Machado hoje médico distintíssimo naquela formosa ilha e que já há muitos anos não temos o prazer de abraçar.

Um dia o Luiz Machado apareceu à porta da Escola, radiante, exibindo uma riquíssima bengala de cavalo marinho, com castão de prata, onde artisticamente se entrelaçavam as iniciais do seu nome.

Os condiscípulos exaltaram a magnificência daquela obra de arte, e a bengala andou de mão em mão, com mal disfarçada vaidade do seu possuidor que, risonho, aceitava os remoques um tanto invejosos dos condiscípulos, empenhados em adivinhar a proveniência de tão luxuosa dávida.

Uns alvitraram que tinha sido presente de roceiro endinheirado; outros que era prenda de alguma azougada mulata, apaixonada pelo futuro doutor. Até que chegando às mãos de um, pôs-se este a ler com vagar as iniciais gravadas no castão e gritou entusiasmado: Eureka! Eureka!...

Correram para ele os condiscípulos na ânsia de decifrar a chave do enigma. L! G! S! M!

Não sabeis o que quer dizer?

- Lembrança do Gungunhana ao seu muleque!... Uma estrepitosa gargalhada ecoou e o Luiz Machado, honra lhe seja, não foi dos que menos se riu, com a maliciosa interpretação das lindas letras esculpidas no castão de prata da sua preciosa “badine”.


III

Já lá vão uns trinta anos seguros[1] depois que uma revista teatral, o A.B.C., se bem me lembro, lançou pela boca da mais desenvolta “estrela” de então, a Júlia Mendes, um fado que correu os salões da alta burguesia e chegou aos mais recônditos cantinhos da província: o fado liró!

Nas ruas, nos cafés, à porta dos mercados, por toda a parte enfim, só se ouvia assobiar o famigerado fadinho. A briosa[2], que nesse tempo não desdenhava de empunhar a sua guitarra, foi das primeiras a ir cantar à porta das várias “Dulcineas” as sextilhas delambidas impressas nas coplas da revista. Forçoso era libertar o espírito académico daquela ronceirice metrificada e nasceu então o “Fado da medicina” que correu anónimo por mãos de mestres e de alunos e onde uns e outros eram mais ou menos zargunchados com piadas certeiras.

Um professor sei eu que ao ver-se alvejado nas sextilhas mordazes, resolveu pagar um bom acto[3] de Patologia geral com uns míseros “onze valores”, aplicados à ciência do aluno que ele suspeitava ser o autor da brincadeira.

É que a sextilha irreverente dizia:

Qualquer faia canta o fado
Para ficar aprovado
No sábio patologista...
Fez um fado o Aguiar
Somente para provar
Que também era fadista!

Embora o mestre não tivesse as tendências que os versos lhe atribuíam, fornecia invariavelmente a todos os seus cursos uns apontamentos, a que os rapazes chamavam o “fado”, que tinham que ser papagueados de lés a lés sem hesitações, durante o ano, e sob pena de um chumbo garantido a quem no acto os não trouxesse também na ponta da língua.

Daí o remoque e a respectiva... compensação...
.....................................................................................

As cólicas que alguém cortou por passar por autor da sátira inofensiva tinham sido atenuadas no ano anterior por um feriado na aula do Prof. Luiz Viegas, mais indulgente com as brincadeiras dos rapazes. Uma manhã, quase no fim do ano lectivo, quando uma lição de anatomia sobre “centros nervosos” trazia os “cepos” assarapantados e receosos de um estenderete raso, resolveu-se lá em baixo no porão, como os alunos chamavam ao teatro anatómico, organizar um grupo orfeónico. E quando o mestre entrou para dar aula, o tenor melhor da companhia, logo secundado pela malta, disparou-lhe esta comovente súplica, com música do liró:
O fado tem tal meiguice
Que o Viegas se o ouvisse
Decerto não resistia...
Rapazes: cantai o fado,
Quando quiserdes f’riado,
Na aula de anatomia...

O coro atroador na ressonância das paredes, respondeu:
Cantam o fado as parteiras,
Boticários, enfermeiras,
Tudo num coro infernal...
E na própria Academia
O Arroio já assobia,
O fadinho em mineral...

Mal contendo o riso, o Prof. Luiz Viegas chamou o “Vitorino”, já pronto para para marcar faltas e dispensou os alunos nesse dia.

A alegria sentida na ocasião pelos rapazes, traduzo-a eu, hoje, pelas lágrimas que me afloram aos olhos, recordando a bondade do professor já morto e essa mocidade irrequieta e feliz que já morreu também!...


IV

Nunca mais entrei depois de formado no vetusto casarão de aspecto conventual, rígido na espessura friorenta do seu granito, que é o Hospital da Misericórdia.

Aquelas enfermarias do meu tempo, e que decerto ainda não mudaram no seu aspecto típico, faziam-me calafrios e dispunham-me mal os nervos.

Perpassava nas galerias sombrias a ressumar água no inverno, um cheiro misto de desinfectantes e de comidas que me parece sentir às vezes na pituitária.

A aula e enfermarias de clínica médica eram lá em cima num ângulo quase virado ao poente e para lá chegar subiam-se uns infindáveis degraus de pedra onde as passadas ecoavam como pancadas lúgubres em caixão mortuário. O ar desconfortável daquelas salas enormes, onde uma ou outra enfermeira punha a nota sorridente duma jarrinha de flores para ter a impressão que nem tudo era doença e desconforto, aborreciam-me e afugentavam-me.

Quando pelas oito horas, pouco mais, o Prof.Tiago de Almeida entrava no Hospital e atravessava o átrio agasalhando na sua comprida peliça os pulmões ressentidos de velhos achaques, nós lá seguíamos atrás do mestre, por vezes a tiritar de frio e mortos por sair daquela geladeira.

Eram duas horas de sacrifício, só amenizadas pelas palestras científicas do Prof. Tiago, que punha meticulosos cuidados na maneira prática de nos ministrar os conhecimentos que deviam aproveitar mais tarde à nossa educação clínica.

Os doentes escolhidos para a nossa aprendizagem eram submetidos a um aturado exame por parte dos alunos a quem o mestre chamava um por um, para melhor fixarem os sintomas objectivos. Não fazia segredo das subtilezas da profissão, e tudo o que sabia, e como melhor podia, entregava generosamente à nossa natural curiosidade.

Esta confissão devemos à honrada memória do que foi, por assim dizer, o iniciador do estudo clínico prático na Escola Médica do Porto.

E porque assim foi e porque todo o nosso pouco saber de “João Semana” a ele o devemos e como respeitosa gratidão já confessamos, vá de contar uma partida passada na enfermaria de clínica médica.

Iam ali parar todos os anos, sobretudo no inverno, desgraçados a quem as profissões violentas e o frio faziam adoecer com pleurisias. Os derrames por vezes eram quase asfixiantes e o mestre adestrava-nos na extracção do líquido que abafava os doentes. Estes bem diziam dos rapazes quando os aliviavam de alguns litros daquela serosidade que lhes imprensava dolorosamente os pulmões e prometia sufocá-los. Antes porém, o professor fazia-nos auscultar cuidadosamente os doentes e percuti-los para termos a certeza que pleuríticos se tratava.

Havia um sinal característico que ele sempre nos obrigava a indagar: o sinal da moeda ou do Pitres, como era mais conhecido. O mestre tirava duas moedas de cobre da algibeira e com elas batia na parte anterior do tórax dos doentes, mandado-nos ouvir na parte posterior o som metálico nítido que se transmitia através da massa líquida. Depois, passava as moedas de mão em mão para que todos os alunos constatassem o fenómeno.

Alguém que propositadamente se deixava para o fim guardava os dois vinténs, e ía regaladamente com eles tomar café ao “Chaves”.

A peripécia repetiu-se algumas vezes, até que um dia o Prof. Tiago, já com a pedra no sapato, chamou o aluno useiro e vezeiro e disse-lhe: vamos lá observar este doente, mas puxe você pelo pataco, que eu já estou farto de lhe pagar cafés!... Omite-se por dispensável o nome do estudante, para só destacar com merecida evidência a figura inconfundível do Prof. Tiago de Almeida, que sabia fazer de cada aluno um amigo, naquele casarão húmido e triste da Misericórdia, onde ele estoicamente professou durante mais de vinte anos, com desusado brilho, a nobre arte de Hipócrates.


Vila do Conde, Maio de 38

Do livro em preparação
“Mestres e rapazes do meu tempo”

ARTUR DA CUNHA ARAÚJO





[1] Recorde-se que este texto foi escrito em 1938.

[2] A palavra "briosa" é frequentemente usada para designar a Academia de Coimbra, ou mais precisamente a Associação Académica de Coimbra (principalmente, depois dos anos 20, a sua equipa de futebol). Aqui é usada simplesmente para referir a academia, neste caso a do Porto.

[3] A palavra "acto" é usada aqui ainda com o significado de exame.