quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Douta Assembleia dos Capelos

[José Souto Teixeira, Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 19]


A corresponder ao pedido dum velho companheiro da minha geração académica, cá estou a escrevinhar qualquer coisa, como se fora uma página de memórias dos bons tempos em que frequentei a nossa Universidade.

Para ela entrei, já lá vai mais de uma quarentena de anos[1], pode dizer-se, pelo braço do Modesto Osório que tão vincadamente marcou a sua personalidade como regente da Tuna Académica e que todos os do meu tempo recordam com respeito e saudade. Frequentávamos ambos o Liceu de Viseu. Lá tinhamos a nossa Tuna. Ele o regente, eu o chefe dos violões. Cursava o sétimo ano quando Modesto Osório me escreveu um postal do Porto onde dizia: «não vás para Coimbra; foge dos «canelões» e das «troupes»; aqui sou caloiro e regente da Tuna; os violões são fracos e aqui fazes um figurão».

Segui o conselho e numa fria noite de inverno, de banza ao tiracolo, cheguei ao Porto e quando Modesto Osório me encaminhava para uma pensão da Rua dos Caldeireiros, fomos, ao dobrar duma esquina, cercados por um grupo de embuçados.

Que biltre, este Modesto Osório, pensei com os meus botões!... E dizia-me que no Porto não havia «troupes» e prega-me esta partida!... Insultei-o. «Cala-te, disse-me em surdina, em tom enérgico mas um tanto apavorado. São os «trauliteiros». Não nos fizeram mal mas não ganhei para o susto.[2]

A primeira aula a que assisti foi a de Química Inorgânica, regida pelo Conselheiro José Arroio. Ainda o estou a ver no seu fraque impecável, a sua pêra grisalha, com dois pares de lunetas de vidros muito espessos cavalgando no nariz, escrevendo fórmulas químicas com giz envernizado para não sujar as mãos.

A seu lado, o preparador Aprígio Dantas, de esponja em punho pronto a apagar, a um sinal do mestre, o que no seu quadro se tornava desnecessário. O tempo tornou-me admirador do Conselheiro e amigo do Dantas, esta figura incomparável que o Zeferino, no «Porto Académico» de 1938, assim retratou: «baixo, muito gordo, cara rapada, com uma cicatriz no lábio superior produzida por queimadura de qualquer ingrediente químico, o Dantas, que a todos tratava por tu, gozava duma propriedade: dormia de pé».

O ano tinha corrido agitado. O tifo exantemático, a pneumónica, as greves, as consequências sociais e políticas que sucederam à primeira guerra mundial, pertubaram os trabalhos escolares e o Conselheiro Arroio só conseguira, do programa, dar os metalóides e dois únicos metais: o ferro e o alumínio. Nas vésperas dos actos[3], o bom do Dantas avisou os alunos que era da praxe ir a casa do Mestre pedir benevolência. Desgraçado aquele que o não fizesse. Eu era o último a fazer exame e todos os que me antecederam seguiram o conselho do Dantas. E assim, na véspera do primeiro exame que is fazer na Universidade, meti-me no eléctrico e lá fui até à Foz, a casa do Mestre.

Recebeu-me no cimo da escada, embrulhado num roupão de seda. Já com a porta da rua aberta e quando fazia a vénia final da despedida, o Mestre diz-me lá de cima: Oiça lá, creio que durante o ano só fizemos o estudo de dois metais, mas não me lembro quais. Respondi-lhe: o senhor Conselheiro deu o ferro e o alumínio, mas não tem feito perguntas sobre eles nos exames já feitos. O Mestre sorriu-se e retorquiu: não tenho feito perguntas sobre esses metais por esquecimento, mas de futuro não me esquecerei. Saí radiante. O Mestre simpatizara comigo e indirectamente tinha-me dado o ponto para o exame.

Vim para o quarto e toda a noite só estudei o ferro e o alumínio. Chegou o exame. Uma hora decorrida e o Mestre só me tinha feito perguntas sobre os metalóides. No final do acto, disse-me: «Está terminado o seu exame; não lhe fiz perguntas sobre os metais porque tenho a certeza de que o senhor os estudou toda a noite». E tinha acertado, mas nos exames sequentes – química-qualitativa e química-física – tomei as devidas precauções.

Os tempos corriam agitados nos primeiros anos em que frequentei a Universidade. Entrei para a pensão da Rua dos Caldeireiros a pagar vinte escudos por mês e pouco mais de um ano decorrido pagava oitenta. A situação, por vezes, para os comensais da pensão, quase todos estudantes, tornava-se aflitiva em face do rápido aumento do custo de vida. Enquanto uns iam pagando como podiam, ou pediam moratórias, outros pagavam em géneros que tinham escondidos nos quartos debaixo das camas, arranjados a preço baixo ou gratuitamente quando o povo amotinado assaltou os armazéns dos açambarcadores.

E sucedeu o inevitável. A pensão rebentou e, quando num dia ansiosamente esperávamos o jantar, o dono da pensão veio ter connosco e disse: «Não lhes posso dar hoje de comer»; e, dando a cada qual vinte e cinco tostões, continuou: «Com este dinheiro, o dinheiro do jantar, podereis ir comer aonde quiserdes». Assim foi, fomos todos para um tasco da Rua de Trás e jantámos castanhas assadas regadas com bom vinho verde. Foi, talvez, a refeição de toda a minha vida de que guardo mais grata recordação.

Estoicamente enfrentámos a realidade e resolvemos fundar uma «República». Descobrimos um estupendo colaborador na pessoa do Sr. João Loureiro, galego de origem, dono duma casa de comidas e bebidas num rés-do-chão, na Rua de S. João Novo, em frente do velho Tribunal. Fundou-se assim a «Douta Assembleia dos Capelos», que se manteve durante uns três anos, regida por «Constituição» própria a que todos deviam cega obediência. Os iniciados admitidos eram sujeitos a duras provas.

À volta da «Douta» girava toda a vida académica do Bairro: ruas das Taipas, do Calvário, S. Miguel e Belomonte. A população associava-se às nossas festas, principalmente quando um de nós era feliz no exame feito ou da parvónia chegava, dos pátrios lares, pitéu de respeito. Cada grande festa era seguida de baile. Tudo tinha entrada – pax intrantibus – principalmente as raparigas. E quando a casa não chegava, bailava-se na rua. Lembro-me, duma vez, que entre elas estava a filha do regedor da freguesia que morria de amores por um «douto». De súbito, – no auge da festa, entra o regedor com ar imponente e autoritário e prega uma bofetada na filha.

E enquanto a rapariga, em altos gritos dizia: – «Bata, meu pai, que o amor batidinho é quanto sabe melhor», – armou-se tal zaragata que alvoroçou todo o bairro. Entram na liça alguns «futricas»[4] despeitados, ouvem-se apitos e a polícia dificilmente conseguiu serenar os ânimos. Tudo dispersou, mas pouco depois, um polícia, o «111», quando alguns de nós pretendiam fazer uma serenata ante a casa do regedor, prendeu-nos a todos. Obedientes, lá fomos parar à esquadra da Bolsa. O chefe, uma excelente criatura, deu-nos minutos depois a liberdade. Protestámos. Só a aceitávamos e estávamos decididos a não abandonar a esquadra, mesmo à força, a não ser que o «111» nos pedisse desculpa. O chefe estava um tanto embaraçado, tanto mais que se estavam juntando, em frente da esquadra, bastantes populares.

O «111», ante a feição que os acontecimentos estavam tomando, pediu-nos desculpa. O chefe fez que não percebeu e deu-nos as boas-noites e conselhos. Alguns dias depois, o «111» foi convidado de honra da «Douta». Comeu-se e bebeu-se bem e a alegria reinou. O «111» apresentou-se à paisana, ficou nosso amigo sincero e pediu que o não metessem em sarilhos quando estivesse de giro no bairro, porque «ordes» são «ordes» para se cumprirem.

A «Douta» também era considerada entre a Academia. A ela pertenciam, em determinado ano, o presidente da Associação dos Estudantes, o director do jornal académico do tempo e um dos dirigentes da Tuna. Por outro lado, a «Douta» sempre se associava a qualquer iniciativa popular das gentes do bairro, nas comissões para as festas do S. João, festas de caridade para socorrer um necessitado ou qualquer outra iniciativa. Por todos era olhado com respeito aquele «grupo de almas gémeas e irmãs», ao qual o primeiro «douto» que dela saiu, o António Fernandes, de Vinhais, ofereceu a sua tese de doutoramento e os seus actos de altruísmo e humanidade muito nos honravam e desvaneciam.

Fiel a estes sentimentos estava no pensamento de todos socorrer os infelizes e infelizes eram os inofensivos animais que a empresa do Palácio de Cristal mantinha em jaulas no seu jardim, para gáudio da pequenada e admiração dos basbaques: uns vinte ou trinta macacos, um porco bravo e dois faisões.

Chegou o momento de actuar. Reuniu-se no restaurante do Palácio um V ano médico, em festa de confraternização e despedida. A «Douta» foi convidada para a festa. O jantar terminou já noite adiantada. Os da «Douta» resolveram discretamente abrir as jaulas dos animais. Estes preferiram, de momento, o sono à liberdade. Porém, de manhã, havia grande alvoroço para os lados do Palácio. Os macacos eram por toda a parte, o povo ria às gargalhadas com as momices dos libertados, vieram os bombeiros e o caso até foi falado nos jornais. O javali mais uma vez provou a pouca inteligência com que são tidos os da sua raça. Não tinha saído da toca. Os faisões, porém, um prateado e outro dourado, nunca mais foram encontrados. Foram libertados de vez do seu martirizante cativeiro.

O espírito de amizade e solidariedade que existia na D. A. C. acompanhou-nos pela vida fora. Alguns já lá vão e o primeiro a partir foi o mais jovem de todos, o João Ribeiro. Enterre-se o passado com piedade e demos à saudade o que é do tempo, como disse o grande Antero.

O último exame que fiz, ou melhor, que tentei fazer na Universidade, foi com Mestre Bonifácio. Foi a única desistência, ou melhor, reprovação que tive na minha vida académica. Do Mestre Bonifácio contavam-se, no meu tempo, muitas anedotas. O seu tom de voz inconfundível, a sua lealdade, o seu aprumo e o seu saber marcavam em todos os seus alunos um sentimento de respeito. Creio que todos os exames de geometria analítica[5] dos seus alunos, e podem contar-se por milhares, principiavam invariavelmente com a frase: trace a Linha-Terra. Só duma vez me sorri quando ele disse a um meu condiscípulo que examinava: ponha essas rectas mais paralelas...

Depois de ter cursado em duas faculdades e ser assistente duma delas, resolvi, um tanto por diletantismo, frequentar as cadeiras de Geometria Descritiva e Mecânica Racional, ambas regidas por Mestre Bonifácio. Na Descritiva a coisa não correu mal. Presidia ao acto o assistente Queirós. E enquanto Mestre Bonifácio com ele conversava, e de costas voltadas para mim, o examinando, fui lentamente traçando a Linha-Terra. Mestre Bonifácio volta-se e diz-me, com voz de trovão: «Quem lhe mandou fazer esse risco? Nos meus exames o carro não anda diante dos bois...» Apaguei o risco. «Vamos principiar o exame – diz Mestre Bonifácio –, trace a Linha-Terra.

Porém, um ano depois, apresentei-me a acto de Mecânica. Foi um fracasso. Para tal concorreu, talvez, a má disposição momentânea do Mestre e o facto de me ter estendido nas equações de Lagrange. A certa altura do exame, o Mestre diz-me com sisuda carantonha, que lhe era tão peculiar: «Desista do seu exame e venha cá na próxima época; o senhor merece um dez, mas como tem responsabilidades nesta casa deve cá voltar de novo mas mais bem preparado».

Alguns dias depois, o João da Biblioteca veio dizer-me que Mestre Bonifácio me queria falar. E quando o procurei disse-me afavelmente: «O senhor não sabe nada de cálculo; estou pronto a dar-lhe algumas lições». Agradeci-lhe mas nunca mais o procurei, não sei bem porquê, talvez por timidez ou porque novos rumos orientassem a minha vida. Alguns anos decorridos, já Mestre Bonifácio, segundo creio, estava jubilado, encontrei-o casualmente e, quando cerimoniosamante o cumprimentava, disse-me secamente: «Afinal nunca cheguei a ensinar-lhe a integrar». Desculpei-me um tanto confuso e nunca mais o vi.

Eram assim os mestres do meu tempo. De todos guardo grata recordação. A eles devo o que tenho sido na vida. Quase todos já lá vão. Que os que cá estão ainda, somente dois, me continuem olhando com a simpatia com que sempre me distinguiram.

Lisboa, 6-12-61.




[1] Isto é, antes de 1922. Por uma referência abaixo aos trauliteiros, é de supor que o autor tenha chegado ao Porto em 1919.

[2] Não é claro no texto, mas convém esclarecer: os trauliteiros não eram um grupo académico, e sim bandos de arruaceiros ligados à revolta monárquica de 1919 (conhecida como Monarquia do Norte ou Reino da Traulitânia).

[3] "Acto" ainda tinha o significado de exame.

[4] "Futrica", na gíria académica de Coimbra, designava alguém que não é estudante. Como se vê aqui, o termo chegou também ao Porto.

[5] Deve ser gralha. Estes exames deveriam ser de Geometria Descritiva. Em Geometria Analítica não há linha de terra.

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