Quando a rapaziada entrou pela primeira vez, em Outubro de 1921, no átrio sul da Universidade do Porto, para ouvir o mago da química Ferreira da Silva, foi com pânico que viu os estudantes Emídio Guerreiro[1] e o Sobrinho das Barbas, os dois «terroristas» da caloirada.
Indivíduos absolutamente diferentes e opostos no temperamento e no físico, dir-se-iam dois biotipos padrões: um, o primeiro, fisicamente magro, quase limitado ao osso, de génio arrebatado e de inteligência fortemente imaginativa – tipo D. Quixote – o outro, de avantajadas carnes, espantosamente gordo, de largo perímetro ao nível da cinta, no todo um peão humano mas de génio muito calmo, muito frio e de reacções muito lentas, tipo Sancho Pança.
A presença destes dois sujeitos – com uma fama e uma tradição insuperáveis no que dizia respeito à perseguição ao caloiro – era para nós, neófitos universitários, uma segura e certa promessa de que daí a nada, dentro de muito poucos segundos, haveria espectacular garraiada. E assim foi. A coisa principiou logo ali no átrio de química pela operação denominada a tonsura do caloiro. O Sobrinho das Barbas, aquele Himalaia de banha, de tesoura em punho, caiu impiedoso e sádico sobre as cabeleiras que ele, o vândalo de instintos capilaricidas, julgou de mais pretensiosas ou de mais petulantes.
O Sobrinho das Barbas [Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 7].
E um após um dos componentes daquele bisonho, triste e conformado rebanho foi sujeito a esta e a muitas outras tropelias, deste e de outros doutores. O Guerreiro, que era então o chefe da Orchestra Katastrophica – a mais obsoleta e estúpida instrumentação musical que jamais se viu – e que tinha a mania do discurso – para o que tinha inegável jeito, diga-se de passagem – obrigava ora este ora aquele a perorar sobre os temas os mais disparatados ou os mais extravagantes.
«Fale – impunha o Guerreiro – sobre a influência do queijo no aparecimento e no crescimento das Pirambolas do Egipto». E ai daquele que não dissesse meia dúzia de asneiras de respeito e todas de enfiada; massacrava-o então com perguntas e cavalgava-o, o que era bem pior.
Foi assim sob uma penosa influência duma praxe – já então muito pouco aceitável e muito pouco recomendável para a época – que nós fomos ouvir a primeira lição do sábio químico Ferreira da Silva. Vítima duma doença nervosa de implacável garra, entristecia ver aquele facies sem mímica, fixado numa expressão imutável de indiferença o «facies figé» dos Parkinsonianos e aquele trémulo das mãos e dos dedos, estranha cinética de não menos estranhas configurações. Mas aquele cérebro brilhava, porém, de tal modo que nós os seus ouvintes e alunos quase que não víamos as exteriorizações do seu mal, tão grande era a fascinação daquela sua luz interior.
E assim doente continuou ainda por muito tempo a reger química, com espantosa assiduidade e proficiência.
E assim continuou ainda por muito tempo para honra da nossa Universidade.
Depois da prometedora estreia universitária que acima relatámos, veio, como não podia deixar de ser, o hábito, o treino, a adaptação e por último a indiferença. O contacto dia a dia com os doutores, quer na Universidade, quer nos cafés, quer ainda no Orfeão, gastou as últimas resistências a uma boa e sã camaradagem. E foi sem dúvida o nosso Orfeão o agente que mais poderosamente contribuiu para uma boa compreensão, para um são entendimento entre os rapazes dos diferentes graus universitários. Como não podia deixar de ser inscrevi-me neste afamado grupo coral, mas devo declarar em abono da verdade que desiludi o seleccionador, o meu querido amigo e colega Franscisco Lage.
Eu não dava nota musical capaz, por muito que ajeitassa a laringe, mas o Lage era amigo e inscreveu-me no naipe dos barítonos.
Por desgraça minha, ou antes e melhor, por desgraça do Orfeão, havia outro académico que desafinava tanto ou mais do que eu: era o Sobrinho das Barbas, que o padre Ramos, o regente, quis que ficasse sempre à minha sinistra. E naquela noite de estreia no Teatro S. João, ao abrir do pano de boca, o padre Ramos veio direito a nós ambos e clamou: Pelas cinco chagas de Cristo finjam que cantam, porque só vocês, os dois, dão cabo disto. E assim fizemos, abrimos a boca a ritmo ou a compasso com as demais, mas sem que dela saísse qualquer som.
O segundo espectáculo foi no Teatro-Circo de Braga e aqui o padre Ramos repetiu a ordem mas dessa vez exclusivamente à minha pessoa. Suponho que foi castigo pelo que momentos antes sucedera mas de que não fui o principal responsável. E o que se sucedeu, foi o seguinte: – Era orador oficial do Orfeão o Zé Martins, um moço que cultivava e com muito jeito o discurso romântico tanto do agrado da época e das meninas histeróides. Magro, noventa por cento osso, pele muito tostada, quase negra, gaforina desordenada e que ele mais desordenava nos arroubos da sua ditirâmbica oratória, o Zé, que era um excelente moço, tinha porém um senão – de vez em quando descambava em profusas libações em honra de Deus Baco e então sucedia o diabo. Ora o Zé Martins naquela noite de espectáculo não estava bem seguro do seu centro de gravidade.
Corrido o pano e ouvidos os complacentes e habituais aplausos, o Zé avançou pelo palco fora até à beirinha da ribalta e esteve vai não vai para cair em cima da plateia. Por nós todos, e principalmente por mim que sempre adorei este admirável rapaz, passou um frio de morte. Mas o Zé aguentou-se e lembro-me como se fosse hoje que ele principiou assim o discurso que não chegou a acabar: «Minhas senhores e meus senhores: Neste momento histórico em que Gago Cabral e Sacadura Coutinho atravessam o Atlântico...»
Eu que estava imediatamente atrás do orador e no bom intuito de corrigir a gafe, disse-lhe quase em murmúrio: «Ó Zé, olha que é Gago Coutinho e Sacadura Cabral». O moço calou-se por um instante, apercebeu-se do erro e voltou ao princípio do discurso, mas trocou novamente os apelidos aos dois aeronautas. A plateia riu-se, os académicos sussurraram forte alguns impropérios, o Zé não arrancava palavra e o pano correu vertiginosamente ao mando do Padre Ramos já em cólera.
O Zé, o bom e querido amigo Zé Martins, estava siderado e no fim do primeiro acto fui dar com ele, sentado nas escadas das traseiras do palco, a chorar convulsivamente. Juro-te, Henrique, dizia ele com soluços na garganta, que não volto mais a discursar, mas tens de dizer-me quem foi o tipo (aqui não respeito a verdade, porque a designação foi outra) que me emendou, porque esse é que foi o causador do meu grande fiasco.
É evidente que naquela noite não o fiz ciente do causador involuntário daquilo a que ele chamava fiasco, mas fi-lo mais tarde, entre dois golos de café, no Excelsior, numa franca e leal camaradagem como sempre soubemos fazer. Isto passou-se, como se percebe, na altura em que os nossos primeiros descobridores do espaço iam numa pobre e mísera aeronave a caminho do Brasil. O que foi neste país e sobretudo no Porto, quando os dois heróis do ar remataram a sua extraordinária odisseia e quando eles visitaram a nossa cidade, ninguém queira saber. Espectáculo tão grandioso nunca eu mais vi na minha vida e a briosa[2] contribuiu imenso para essa grandiosidade emprestando-lhe o máximo do seu entusiasmo juvenil.
Bons tempos, patrão, como dizia o saudoso e grande actor cómico Estevão Amarante na revista, creio eu, «O 31».
Ao desboninar estes saborosos nacos da minha vida estudantil, tenho forçosamente de recordar não só os meus condiscípulos como ainda os meus contemporâneos, essa grossa falange de rapazes que tanto havia de dar que falar.
Se o meu curso deu médicos muito distintos e afamados e ainda ilustres mestres, tais como Álvaro Rodrigues, Sousa Pereira, Pereira Viana, Fernando Magano e Luís de Pina, muitos outros estudantes meus contemporâneos e que frequentaram outras faculdades marcaram e marcam ainda relevantes posições na nossa sociedade. Assim permito-me recordar alguns alunos da extinta Faculdade de Letras e que deviam ser mais tarde não só ilustres professores do ensino secundário como ainda escritores de grande nomeada e projecção: José Marinho, Salgado Júnior, Santana Dionísio, Armando Lacerda, Agostinho Silva[3], Mateus Macedo e outros.
Nas Faculdades de Ciências e de Engenharia, recordo-me do actual reitor da Universidade, Prof. Correia de Barros; Farinas de Almeida, actual director da Faculdade de Engenharia; Pais de Aguilar; José Praça, um dos mais eloquentes e fogosos conversadores que eu tenho ouvido; Modesto Osório – o regente da Tuna Académica – um excelente carácter e inexcedível nos cuidados e trabalhos com o seu grupo artístico; Adalberto Mendo, engenheiro Paulo Marques, então sargento cadete e que podia servir de figurino a qualquer tropa, tão apurado e peralta era ele no seu uniforme, e finalmente o António Santos Nobre, um dos mais cultos e inteligentes rapazes da minha geração e que foi o fundador deste jornal.
Na Faculdade de Farmácia, brilhava como estrela de primeira grandeza o Marques de Carvalho, que tão grande influência política veio a ter na Academia, já então em franca assimilação do ideário integralista. Contra uma lista republicana, venceu o integralista Marques de Carvalho por uma larga margem de votos.
Esclareça-se que isto aconteceu só em vésperas de 1926. Até então a briosa vivia para o Orfeão e para a Tuna, discutia os seus problemas e derimia as suas pequenas divergências dentro das portas da sua casa, a Associação Académica. Assisti e compartilhei de muitas discussões nas assembleias gerais e sempre verifiquei a preocupação de afastarmos todas as causas ou todos os motivos de divisão entre nós. A Associação, que era exclusivamente nossa e onde nenhuma entidade podia meter o bedelho, foi óptima tribuna para treino oratório de muitos rapazes. Ali se fizeram oradores de muito apreço alguns que supunham não ter qualquer jeito para a sublime arte de discursar sem papel ou sem partitura, como hoje se usa e abusa.
As nossas discussões nas assembleias gerais eram francas, leais e livres, sem quaisquer peias ou entraves ao pensamento daquele que tivesse reclamado a palavra, salvo as que impunham a lei ou o regulamento. Mas, repito, havia em cada um de nós a preocupação de afastarmos todos os motivos de ressentimentos ou de divisão, sobretudo os motivos políticos.
Monárquicos ou republicanos, liberais ou absolutistas, religiosos ou ateus, havia em todos um denominador comum, o respeito, um venerando respeito pelas crenças políticas ou religiosas de cada qual. E que me lembre, apenas uma vez a nossa querida associação foi palco com cenário político e isso, felizmente, foi episódio muito fugaz. Tinha-se feito na cidade o habitual cortejo cívico de homenagem aos vencidos do 31 de Janeiro, em túmulo no Prado do Repouso, mas a Associação não tinha mandado o seu estandarte como sempre o fizera. Como presidia na Direcção o Silva Leal, então quintanista de Medicina e monárquico dos quatro costados, o facto foi tomado como acintoso e daí uma convocação da Academia para uma assembleia extraordinária.
Que o movimento revolucionário do 31 de Janeiro tinha sido um acto patriótico, afirmavam uns, e por consequência a Academia tinha obrigação de dar presença ao acto da romagem: que não, pretextavam outros, o movimento tinha sido uma rebelião com desígnios ou objectivos exclusivamente políticos e neste caso a Associação tinha de abster-se ou ausentar-se da comemoração – tais eram os conceitos que episodicamente dividiam os académicos. Já não sei que explicações deu o Silva Leal, sei que não passou de pequena borbulha aquela ligeira erupção sentimental, pois tudo continuou a correr entre nós na boa paz e na boa camaradagem.
Vou terminar – e já não é sem tempo – com o relato dum episódio cheio de bom humor e graça e que provocou saudável riso em toda a gente desta cidade que a ele assistiu ou que dele tomou conhecimento.
Estava eu quartanista de Medicina, à porta da Universidade a conversar com o Pinto da Fonseca, já finalista – moço que mais tarde devia deixar o seu nome no quadro de honra nacional pela sua actuação nas nossas províncias ultramarinas, quer como médico quer como investigador – quando fomos perturbados pelo barulho que fazia a mulher da macaca no cimo dum carro puxado a cavalos, hoje um veículo anacrónico e de museu.
A mulher da macaca era no final de contas um dos muitos figurões que ainda aparecem por aí de longe em longe, de verborreia incontinente mas persuasiva e sugestiva, com o fito de impingirem ao basbaque e ao incauto as mais estranhas e inconcebíveis farmacopeias como drogas miraculosas ou redentoras. A macaca era um minúsculo símio, uma amostra escassa de primata, que guinchava por tudo e por nada ao menor esticão do cadeado firmemente preso ao lampião da carroça e era figura central para a atracção deste eterno saloio que é o portuense.
Ora, perguntava-me o Pinto da Fonseca, apontando em direcção da macaca: «Não acha você que é ferir de mais, ofender de mais Minerva, com tão disparatadas aldrabices, aqui mesmo, em frente dum dos seus augustos templos? Não acha desaforo isto de dizer tolices e mentiras em série, sem considerar ao menos o sítio em que se dizem? E se desafrontássemos Minerva ofendida, raptando a macaca? Haverá um charivari dos demónios, mas talvez que isso traga a atenção para quem tem o dever de velar não só pela verdade que nos ensinaram mas ainda pela boa fé desta simplória gente do burgo».
«Mãos à obra, aderi eu logo com entusiasmo», e elaborámos imediatamente o seguinte programa: 1) Convidar os caloiros que estavam a sair das aulas, a comparecerem às 14 horas precisas no átrio da Universidade; 2) Cada um devia contribuir com o mínimo de 50 centavos para despesas do acto solene do doutoramento da macaca em Farmácia; 3) A música do Terço romperia à frente do cortejo que deveria descer Carmelitas e Clérigos, até ao Hotel Rainha, na Praça da Liberdade, estabelecimento extinto já há alguns anos; 4) O António Mendes, meu condiscípulo e um dos rapazes mais ricos em verve e em humor que eu tenho conhecido, faria o curriculum vitae do pequeno primata e o discurso do seu doutoramento. Finalmente dar-se-ia conhecimento ao público de tudo quanto se pensava fazer, através de «placards» distribuídos pela «baixa».
Estabelecida a programação, faltava o principal: roubar a macaca.
Escolheu-se um caloiro de físico potente e de espírito decidido e que queria obter antecipadamente a carta de alforria. Não foi difícil convencê-lo a ser a figura nuclear na operação em projecto. Para a realização de tal cometimento ele só pedia que lhe protegêssemos a retirada, o mais era com ele.
Éramos ao todo cerca duma dúzia de estudantes agora em volta do carro e em mistura com os populares, muito atentos e polarizados à palavra fluente da pantomineira. Esta também não deu pela aproximação lenta e bem dissimulada dos rapazes. Proclamava ela em altos gritos as virtudes terapêuticas duma certa pomada, quando um esticão forte arrancou a presa da macaca à lanterna do carro. O bicho guinchou estridulamente, a mulher sufocou a lenga-lenga e desatou a gritar: «Ó da guarda, agarra que é ladrão» e nós, os guarda-costas, abrimos clareira ao raptador na densa massa dos paspalhões.
Um polícia correu açodado e afoito sobre o caloiro, mas estacou firme sem mais um passo em frente, resvés à boca da Universidade, como se rijo travão premisse forte na mola da vontade. Para além do limiar da Universidade nenhum polícia ousava ultrapassá-lo; fazê-lo, era como se diz hoje pisar o risco, e isso, nenhum ousava.
Como fosse obra de magia, juntou-se ali no Largo da Universidade a mais variada e curiosa gente, toda ela com ânsia de saber a razão de tão grande chinfrim que fazia a curandeira. Mas logo ali tudo se esclareceu e se disse ao povo ignaro das nossas intenções benignas e humorísticas e delas também se fez ciente a proprietária do símio.
E tudo iria acabar em bem como vai ver-se. À hora aprazada, a música do Terço, o caloirame, duas tipóias dentro duma das quais ia a mulher da macaca, o padrinho da futura doutora, o António Mendes e o caloiro herói do rapto, que transportava uma enorme pasta de papelão bordada a fitas roxas, desceu em garrido e tumultuoso cortejo até ao Hotel Rainha.
E na varanda do primeiro andar deste velho estabelecimento se procedeu à cerimónia do doutoramento da bicha. Num discurso famoso pela graça, pela vivacidade, pela riqueza do humor, mais uma vez o António Mendes, meu condiscípulo querido, fez valer os seus altos méritos histriónicos.
À mulher da macaca foi entregue não só a pasta com as fitas como ainda cerca de trezentos escudos, as sobras que ficaram depois de saldados todos os nossos compromissos. E entre o riso de todos findou um dos grandes acontecimentos da minha vida académica e com ele findou também a presença atrevida e sacrílega dos curandeiros em frente da nossa Universidade.
[1] Emídio Guerreiro (Guimarães, 1899 - ibid., 2005) foi professor de matemática (assistente na Faculdade de Ciências do Porto em 1931, demitido por razões políticas, e professor em vários liceus parisienses depois da Segunda Guerra Mundial) e político (mação, participou na revolta de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, na Guerra Civil Espanhola, do lado republicano, na Resistência Francesa contra os nazis, foi um dos fundadores da Liga de Unidade e Acção Revolucionária em 1967, e foi secretário-geral do Partido Popular Democrático em 1975).
[2] A palavra "briosa" é frequentemente usada para designar a Academia de Coimbra, ou mais precisamente a Associação Académica de Coimbra (principalmente, depois dos anos 20, a sua equipa de futebol). Aqui é usada simplesmente para referir a academia, neste caso a do Porto.
[3] Trata-se do célebre filósofo Agostinho da Silva (Porto, 1906 - Lisboa, 1994).
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