segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Rapto da Macaca

[Joaquim Ribeiro Chaves, Porto Académico, n.º único de 1962, pág. 6.

Recomendo a leitura da secção final de Bons Tempos antes da deste texto, já que lá se encontra um relato mais detalhado do Rapto da Macaca.]


Por intermédio do amigo comum Arlindo Soares, chegou até mim o pedido de um artigo, para o número comemorativo das bodas de ouro da Universidade e Orfeão Académico nortenhos. Do que foi a mocidade de então, irreverente e folgazã, falam-nos o documentário fotográfico e a memória viva, a todo o instante remoçada, nos contactos de uma geração que teima em não envelhecer.

Falar do Porto, da vida académica, dos laços de amizade, dos ângulos da vida citadina do velho burgo, com todas as virtudes e defeitos, é para mim transportar-me a paisagens edénicas, muito alto, pelas fantasias do sonho, é dar-me intensas tremuras de comoção. Aquele Porto, que eu conheci há tantos anos, quando abri pela primeira vez as tenras pálpebras, aquela cidade buliçosa no seu trabalho exaustivo, aquele casarão – o Hospital da Misericórdia[1] – que me apresentou ao Mundo, a nova mole de pedra, em frente, que me deu um título, os genuínos pregões que tantas vezes me acordaram, o deambular noctívago pelos meandros da luz e da penumbra, tudo isso pertence ao passado, mas vive da perenidade de uma memória que não se dissipa. Ainda hoje, longos anos volvidos, visito com saudade aqueles recantos, que me deram a felicidade por conta-gotas e fizeram de mim um romântico, um sonhador impenitente, uma hercúlea força de vontade, apostado em vencer as maiores crises, com que a madrasta da vida teima em mimosear-me.

À parte raras excepções, não teremos neste número, como no anterior, crónicas dedicadas a astros na medicina e nas letras, de primeira grandeza, da larga envergadura de um Ricardo Jorge, um Ferreira da Silva, um Camilo e outros. Esses grandes, em qualquer parte do Mundo, não se repetem nos séculos, mas iremos reviver a nossa hora de saudade ateando o fogo sagrado de uma convivência feliz, despreocupada e alegre, nos artigos que as musas derem à luz. Lamento, no entanto, a lembrança e não mereço a honra que me deram, em participar nesse número de uma tal projecção académica, ao trazer o pequeno tributo da minha desataviada prosa. Caem sobre mim os primeiros flocos de neve, mensageiros indesejáveis dos estragos do tempo, meio século já passado de uma luta sem tréguas, e a caneta indecisa e tímida a custo vai dizendo o pouco que sabe do muito que viveu. E assim, como quem não quer a coisa, chegamos ao célebre episódio da «macaca» incidente ou fasto que teve foros de audácia, nas irreverentes manifestações de sangue na guelra.

Corria branda a manhã e nos claustros do senado académico, uns tantos conspiradores davam os últimos retoques no plano do mais sensacional rapto, executado pela turba académica. O caloiro, a vítima escalonada para o efeito, ordenança de cega obediência, devia embrulhar o símio no negrume da capa e em fuga rocambolesca entregá-lo ao supremo tribunal académico, na Associação Académica, paredes meias com o velho liceu de Rodrigues de Freitas.[2] Perante a estupefacção da clientela embasbacada, das mil e uma bugigangas oferecidas à pasmaceira do público e num lance de prestidigitação, a dócil macaca atónita e trémula deixou-se enlaçar, para um julgamento sumário.

E a Praça da Liberdade, a tipóia e a vendedeira de um sem-número de panaceiras desgrenhadas e a gesticular permanecem na minha memória, como quadro vivo, da nossa vida académica. Seguiu-se um julgamento em forma, o qual terminou pela absolvição da ré, após a defesa brilhante do Dr. Alcino Pinto, que achou indecoroso trazer ao pretório um inocente primata, dinâmico reclamo da banha da cobra. E eu que estava como Pilatos no Credo, fiquei condenado nas custas, como adiante se verá. Distribuiram-me – pobre caloiro! – um balandrau, uma corneta e uma cartola, indumentária que, depois de enfiada no cabide, me tornava irreconhecível como convinha. Um veterano comandava o pelotão de quantas vítimas acaloiradas encontraram à porta de Minerva e eu dava o toque de cornetim, segundo as ordens do chefe. E então, a dois formar, descemos à Praça, todos com os fatos ao invés e calças arregaçadas, para gáudio da multidão.

Depois de uma série de manobras da real gana do chefe, seguimos para a então Faculdade de Letras, a qual tomámos de assalto, estabelecendo aí o pânico, para depois, senhores da situação, nos entregarmos a exercícios estratégicos, os mais variados. Descia a noite e quase todas as vítimas da folia estavam com o café da manhã, mas aquele bando de andorinhas, chilreando e a dar largas à sua mocidade exuberante, voltou aos beirais do último andar, a preços módicos, das típicas ruelas do meu saudoso Porto. E desta maneira ficou encerrado um episódio genuinamente académico, mais uma brincadeira inofensiva a marcar uma época de efervescente bom humor.




[1] Isto é, o Hospital de Santo António.

[2] O Liceu Rodrigues de Freitas funcionava então na Rua de S. Bento da Vitória, no edifício onde está hoje instalada a Polícia Judiciária.

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