domingo, 28 de maio de 2023

Viamonte e José Taveira, dois cantores de fados da primeira metade da década de 1920

Na segunda metade da década de 1920 o grande cantor académico do Porto era Carlos Leal (v. Carlos Leal «O Rouxinol do Ave», "Tempos da fadistação...", Registos fonográficos de Carlos Leal e Amândio Marques e Gravações de estudantes do Porto dos anos 1920 no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado).

Mas no início dessa década, quando Carlos Leal já andava em serenatas mas era ainda estudante do liceu, as estrelas eram outras.
No Porto Académico de 28/05/1923, p. 3, pode ler-se: "Haverá algum estudante que não saiba que Viamonte e Taveira são os azes (seja-me permitida a palavra?!) do fado entre o nosso meio? Parece-me que não!".

Esse cantor Viamonte, que também é referido nos textos de Carlos Leal e Amândio Marques (neste caso como "Viemonte", por gralha), seria certamente Francisco Viamonte de Sousa da Silveira (1897-1963), que também usou o nome Francisco Leite Correia de Almada de Viamonte da Silveira e era filho de José Viamonte de Sousa da Silveira, Visconde de Viamonte da Silveira. Esteve matriculado na Universidade de Coimbra (em Matemática?) entre 1915 e 1919. Neste ano transferiu-se para a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, inscrevendo-se nas cadeiras que lhe faltavam para completar os Preparatórios de Engenharia; depois ter-se-á inscrito na então chamada Faculdade Técnica da UP, pois viria a ser engenheiro civil.
Em maio de 1922 participou na digressão do Orfeão e da Tuna a Espanha, na qual os espetáculos terminavam com «Guitarradas e Fados pelos estudantes Aires Pinto Ribeiro, Aurélio Fernandes, Ernesto Cardoso e Viamonte» (Programa das festas a realizar em Espanha). Em 1923 participou numa excursão (com espectáculos) do 4.º ano de Medicina pelo sul do país, cantando fados acompanhado por Milheiro (Porto Académico, 09/04/1923, p. 4) e colaborou numa festa em benefício do Asilo de S. João, cantando fados (Porto Académico, 07/05/1923, p. 2).
Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. 34, verbete "Viamonte da Silveira (Viscondes de)") casou-se em 1925, e é natural que nessa altura já tivesse concluído o curso. Seja como for, não conheço qualquer referência à sua participação em actividades académicas depois dessa data.

Quanto a Taveira, trata-se de José dos Santos da Silva Taveira, nascido em 3 de Junho de 1901 em Goujoim, Armamar, filho de Francisco da Silva Taveira.
Inscreveu-se na FCUP em Outubro de 1921, provavelmente com vista a fazer os Preparatórios de Engenharia Civil, Mecânica, ou Electrotécnica; mas na FCUP não parece ter tido aprovação em mais do que três disciplinas (Química - curso geral, Desenho Rigoroso e Desenho Topográfico), nos anos lectivos 1921/22 e 1922/23 [Livro de registos de inscrições e exames dos alunos da Faculdade de Ciências (Nº 23)].
No início e meados da década de 1920, José Taveira foi muito activo como cantor de fados. Nos números do Porto Académico de 1923 e 1924 há várias referências a actuações suas em espectáculos, quer integrados em excursões de alunos da Faculdade de Ciências ou da Tuna quer na recepção à Tuna de Madrid que visitou o Porto; por exemplo, na excursão da Tuna a Vila Real, «os fados e as guitarradas pelo Taveira[,] Brandão, Cicero e Delgado agradaram bastante e foram bisadas» (Porto Académico, 28/05/1923, p. 1). O guitarrista que mais frequentemente acompanhava José Taveira era Ernesto Brandão, também da Faculdade de Ciências.
A partir de Abril ou Maio de 1924, José Taveira dividiu o palco com Carlos Leal: num espectáculo da Tuna em Viana por essa altura, «os fados pelos Drs. Aires e Aurelio Fernandes e por Taveira e Leal fizeram vibrar intensamente numa emoção forte a todos os que tiveram o prazer grande de ouvi-los» (Porto Académico, 05/05/1924, p. 3). Segundo Amândio Marques, «José Taveira e Carlos Leal, eram os solistas admiráveis [...] pela sua voz melodiosa, forte, encantadora e sentimental, do Orfeão e da Tuna. E eram, também, os cantores dos lindíssimos fados de então». Para além das actuações em palco, tanto Amândio Marques quanto Carlos Leal apontam José Taveira como participante habitual em serenatas. No entanto, é bastante claro que Carlos Leal rapidamente assumiu o primeiro plano. Foi logo em 1924 que o regente da Tuna Modesto Osório compôs para o jovem tenor a música «A Tua Serenata».
Depois do seu parco sucesso académico na Faculdade de Ciências, José Taveira deve ter-se inscrito no Instituto Superior de Comércio do Porto no curso superior consular que lá funcionava. O Anuário Diplomático e Consular Português de 1966 diz que era «licenciado em Ciências Económicas e Financeiras», o que deve ser uma referência a ter feito algum curso nesse Instituto. [Tentando explicar: o Instituto Superior de Comércio do Porto foi criado em 1918, à imagem e com estrutura exactamente igual à do Instituto Superior de Comércio de Lisboa, que já existia desde o início da República; estes dois institutos ofereciam, entre outros, o curso superior consular; em 1930, o Instituto Superior de Comércio de Lisboa passou a chamar-se Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) e foi um dos institutos fundadores da Universidade Técnica de Lisboa; em 1933, foi extinto o Instituto Superior de Comércio do Porto, funcionando transitoriamente até 1936 para os alunos já inscritos poderem terminar os seus cursos; durante esse período transitório, foi utilizado o nome Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras do Porto - v., p. ex. «A "Festa da Pasta" no Instituto Superior de Ciencias Económicas e Financeiras», Commercio do Porto, 21/05/1935, p. 6.]
Pelo final da década, José Taveira gravou vários discos, quer como cantor quer acompanhando antigos colegas à viola (a próxima entrada deste blogue será sobre essas gravações). Em Maio de 1929 estavam para ser postos à venda os discos em que acompanhava o guitarrista Manuel Pereira Leite, mas num espectáculo em que este tocou as mesmas músicas, o acompanhamento à viola coube a Pais da Silva («Festa de caridade no Theatro S. João», O Commercio do Porto, 05/05/1929, p. 2) - o que pode indicar que José Taveira estaria já, possivelmente, a desligar-se da vida académica e musical.
Em Fevereiro de 1930, José Taveira entrou para o quadro diplomático e consular. Foi cônsul, entre outros sítios, em S. Paulo (1934-1935), México (1941-1945) e Banguecoque (1953-1955). Terminou a carreira em Lima (Peru), como encarregado de negócios (1961-1964) e embaixador (1964-1966).
O n.º único de 1962 do Porto Académico também inclui um texto seu sobre os tempos de estudante no Porto, («Mira, mira! Son los mismos!...», p. 24) assinado por «José Taveira - Cônsul de Portugal em Lima (Peru)». Curiosamente, em vez de se focar em glórias como solista da Tuna e Orfeão, serenateiro ou cantor com discos gravados, esse texto centra-se na história da excursão do 3.º ano de Ciências à Galiza em 1923, que tinha sido um fracasso - a um público que esperaria uma tuna, os excursionistas apresentavam fados e guitarradas e uma comédia em português, com piadas que a assistência não compreendia.
José Taveira morreu em Abril de 1967, em Lisboa (Diário de Lisboa, 04/04/1967, p. 17).

Agradeço a Manuel Marques Inácio a ajuda na biografia de José Taveira.

Sem comentários:

Enviar um comentário