domingo, 11 de abril de 2010

O Café Lisbonense

[Sá d’Albergaria, O segredo do Eremita, vol. 3, 1902, págs. 31-35][1]


O Café Lisbonense era [por volta de 1885] o ponto de reunião da estudantada do Porto.

E que bons e alegres espíritos eram muitos desses rapazes [...]. O Zé Veiga, um latagão moreno, com as cores do presunto da sua província - Trás-os-Montes - a dar-lhe à face sempre risonha e alegre o aspecto da força e da saúde.

Alto, espadaúdo, compleição vigorosa de transmontano, falando muito alto, com grande ruído, como se o mundo todo fosse feito para ele e só ele vivesse e falasse nele. Na rua ou no café, à porta da aula ou em casa, ele chamava os amigos de um ao outro extremo da sala ou de um ao outro ponto da rua, com o mesmo metal de voz forte, como se estivesse num deserto. E ao chamamento seguia-se logo o gracejo, o dito espirituoso, como se ninguém mais o ouvisse.

Não via, não conhecia mais ninguém senão as pessoas a quem se dirigia - que eram sempre condiscípulos, amigos ou companheiros de quarto.

- Ò Paranhos! Ò bêbedo, já estás com a turca?

E daí, quatro pernadas de gigante, um amplexo vigoroso dos seus fortes braços musculosos e o pedido formulado numa voz de trovão:

- Ponha para aqui um charuto! Estou depenado.

E charuto aceso e primeiras fumaças tiradas, lá estava ele voltado para outro:

- Ò seu Novais, ò seu malandro, fica intimado para pagar a ceia! Você tem dinheiro, não negue... Venha daí...

E lá agarrava no pobre João Novais, um excelente rapaz, a esse tempo meio médico e meio republicano, e já hoje médico completo e republicano inteiro, e levava-o a pagar a ceia.

O Paranhos, um ratão de bom gosto, que frequentava a Escola Médica por obediência à família e que sabendo que o lente, o Dr. Lebre, era surdo como uma porta, quando este o chamava à lição, levantava-se, começava a gesticular vivamente e a mexer os beiços, sem pronunciar palavra, conservando assim por muito tempo o lente com os olhos arregalados e a mão na orelha em forma de corneta acústica, fazendo esforços sobre-humanos para perceber as palavras que ele não proferia. Ah! o Paranhos! Contavam-se as ratices dele entre os rapazes, e por mais sisudo que fosse ou por mais triste que estivesse, não podia deixar de rir a bom rir.

- Não sabes o que fez hoje o Paranhos na aula? - dizia-se.

- Não, o que foi?

- Levantou-se, dirigiu-se ao Lebre e disse-lhe: “João, quero-te ir aos queixos, e vou esperar-te lá fora... posso ir?”

E o lente, muito sério, persuadido de que ele lhe pedia licença para ir à retrete:

- Pode ir...

- Mas vê lá - replicava o Paranhos, com uma cara impagável - se vês que não aguentas duas solhas calado... esntão não vou!...

- Pode ir! - berrava o lente exasperado pela insistência do pedido.

- Bem, nesse caso vem cá ter.

E saía.

Os estudantes riam, e o Paranhos, impertubável, saía da sala, dizendo:

- Vou-lhe aos queixos... Vocês ouviram que ele deu licença...

Havia o Marcondes, uma bela figura de rapaz, sempre muito janota, muito correcto no porte e no vestuário, mas sem afectação nem desdéns para com os mais modestos ou mais estroinas.

Havia o Bonga, o Monstro - um transmontano, negro e bexigoso, com um grande nariz plantado no meio de um enorme carão, iluminado por dois olhos negros, vivos e bondosos; rindo muito, trocando piadas com os companheiros, que lhe chamavam alternadamente o Bonga e o Monstro.

O Queirós Veloso, com o seu olhar doce, aveludado, grande suavidade na voz e que parece a música ao som da qual dança o sorriso que lhe acompanha as palavras.

A estes boémios de escola, juntavam-se os boémios do jornalismo, na literatura.
[Seguem-se vários nomes, entre os quais Sampaio Bruno, e o seguinte, que toma parte no relato da "Homenagem".]
Joaquim d’Araújo que já então preparava a Lira íntima.




[1] O segredo do Eremita é um romance, mas o autor chama-lhe "romance de costumes" e diz no prefácio que "os seus personagens existiram" e "tudo que aí se conta sucedeu" (vol. 1, 1902, págs. 6-7). Esta passagem refere pelo menos quatro personagens históricas: o dr. João Dias Lebre, professor da Escola Médica, José Maria de Queirós Veloso, Sampaio Bruno e Joaquim d'Araújo. É possível que alguns dos outros nomes tenham sido alterados, mas é razoável supor que as caracterizações se inspirem em personagens reais.

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