terça-feira, 13 de abril de 2010

A Homenagem

[Sá d’Albergaria, O segredo do Eremita, vol. 3, 1902, págs. 38-41, 67-82.
Como já foi dito acerca d'"O Café Lisbonense", O segredo do Eremita é um romance, mas o autor chama-lhe "romance de costumes" e diz no prefácio que "os seus personagens existiram" e "tudo que aí se conta sucedeu" (vol. 1, 1902, págs. 6-7). Sou bastante céptico relativamente à veracidade da estória aqui contada. No entanto, não me parece de todo irrelevante uma estória passada num meio estudantil, apresentada pelo autor como verdadeira – inspirando-se possivelmente em situações e ambientes reais.]


[...] o estudante [Roberto] entrou no Lisbonense seriam oito horas da noite.

- Ora ainda bem! Ainda bem que apareces! - gritaram algumas vozes, saídas de um grupo de rapazes sentados à volta de uma mesa, ao centro da sala.

- Então o que há?

- Há que vamos fazer uma patuscada de mão cheia e é preciso que não faltes.

- Eu afianço-o! Este é dos nossos, não falta! - exclamou o Veiga, na sua voz de stentor. E acrescentou logo: - Ponha para aqui um charuto!

Antes, porém, que Roberto tivesse tempo de lho dar ou de o recusar, já o Veiga lhe introduzia a mão no bolso e se apoderava do charuto.

- Este é rico, este é proprietário... pode bem com a multa... Não é como vocês, seus pelintras, que só fumam cigarros de oito... É dos de trinta e Flor de Creta - continuava, admirando-o, antes de o acender.

- Mas vamos a saber... De que se trata?

- Trata-se de glorificar um poeta, oferecendo-lhe uma ceia.

- Uma ceia?

O Joaquim d’Araújo, com um sorriso meio aberto, meio fechado, que lhe dá à boca o aspecto rugoso de uma rosa de Alexandria, explicou com voz melíflua:

- Sim. Existe aí um poeta assombroso, um poeta piramidal, que se chama o sr. Anastácio Gomes... Ora este poeta queixa-se de que não é suficientemente apreciado o seu estro; e nós resolvemos oferecer-lhe um banquete lauto... isto é... encher-lhe a barriga, coisa de que ele muito precisa em verdade, e por fim entoar-lhe um hino... Já fizemos o cálculo e deita a coisa, com troça e tudo, lá para dez tostões por cabeça... o banquete é de cinquenta talheres; mas o nosso poeta não paga nada.

- Deve ser uma noite cheia! - observou o Paranhos.

- Já se encomendou uma coroa de cascas de alhos para lhe ser oferecida no fim...

- Mas quem é esse Anastácio Gomes?

- É um parvo que faz versos muito engraçados, pelas calinadas monumentais de que os recheia.

- Mas ele em que se ocupa? - insistiu Roberto, cada vez mais interessado em saber quem fosse a vítima daquela brincadeira de rapazes, por suspeitar que o Anastácio Gomes se relacionasse de perto com o primo das Gomes, seu rival e proposto noivo de Camila.

- É um súcio que se emprega no comércio, onde parece que não está mal, mas que tem a mania de ser poeta.

- É do Porto?

- É. Chamam-lhe até o Primo das Gomes, porque está sempre a falar nas suas primas Gomes - umas seresmas que prometeram deixá-lo herdeiro quando morressem...

- Ah! Tenho ouvido falar.

- Mas vamos a saber, podemos contar contigo?

- Talvez... Amanhã darei resposta.

- Não senhor! Há de ser hoje... porque é preciso que tudo fique combinado.

- Pois bem, contem comigo.

- Viva! - bradaram todos os rapazes alegremente.

- Olha que hás de botar discurso, ouviste? - preveniu o Bonga. - Olha que o discurso é obrigado...

- É verdade - afirmou o Joaquim d’Araújo - o poeta também recita... Eu comprometo-me a fazê-lo recitar... Isso vai ser muito bom! [...]

[ Entretanto, Roberto fala a Camila da “homenagem” ]


A ceia tinha sido encomendada no restaurante conhecido pela denominação da D. Ana das ... gordas, em Entre-Paredes.

O avultado seio da proprietária, uma mulher quarentona, mas ainda fresca, tanto quanto o pode ser uma mulher nessa idade, robusta e nutrida, tinha dado ao retaurante e à D. Ana a denominação comum.

Esse restaurante, que já hoje pertence a novo proprietário, conserva ainda agora a antiga denominação; e posto a tabuleta o anuncie aos transeuntes como Restaurante Português, o certo é que o boémio portuense desse tempo não o conhece senão pelo Restaurante da D. Ana das ... gordas.

Omite-se por um resto de amor à decência... escrita, o que a decência falada nas ruas do Porto repete em voz alta.

As reticências não se fizeram para outra coisa, senão para servirem de parra à nudez, às vezes mais que paradisíaca, de certas frases ou fórmulas populares.

Vamos adiante.

É o Restaurante da D. Ana um amplo barracão de madeira, que outrora foi construído para servir de vacaria e que mais tarde foi convertido em restaurante.

À entrada, sob uma ramada, ao ar livre, estão colocadas algumas mesas toscas de madeira que, nas noites calmosas, são preferidas pelos frequentadores.

E no mesmo plano, divididas por frágeis tapamentos de madeira, há duas ou três salas bastante espaçosas, com umas mesas sempre sujas e escassamente iluminadas a gás.

O resto do edifício subdivide-se em quartos reservados, com a sua negra e suja cortina de chita a tapar-lhes a entrada e a vedar das vistas indiscretas o seu velho bico de gás saído da parede, a esclarecer a toalha nojentamente enodoada, estendida sobre a tábua de pinho assente em quatro pernas e pomposamente crismada com o nome de mesa.

Não era em nenhum dos quartos reservados, onde apenas podem estar à vontade duas pessoas - ainda que os bancos indicam lugar para quatro - que havia de ser servida a ceia.

Escolheram os rapazes a sala da entrada, à direita, por ser a mais espaçosa e a mais isolada de todas; e para aí se dirigiram às 10 horas da noite todos os convivas.

O Joaquim d’Araújo, que se encarregara do menu, dava ordem ao criado - um galego grosso e gordo - para que fosse dispondo a mesa, pois que o banquete, às 10 e meia em ponto, devia principiar com os convivas que estivessem.

- A hora marcada era para as 10 - dizia. - Concedemos meia hora de espera. Quem chegar mais tarde entrará na altura em que estiver o banquete.

O Veiga, fazendo sempre muito barulho, intrometia-se nas atribuições do Araújo e dava ordens ao criado.

- Ò Juan! Ò Romão! Ò galego! - berrava ele - E vinho! Vê lá, deita bastante vinho nessa água, ouviste?

- Meus senhores, - disse o Araújo aos convivas já reunidos - proponho que façamos as coisas com a solenidade e respeito devido ao eminente vulto que pretendemos honrar neste banquete. Acho para isso indispensável que se nomeie uma comissão que vá receber à porta e introduza na sala do festim o poeta extraordinário que vem proporcionar-nos a mais bela noite que ainda temos passado desde que somos gente de andar de noite!

- Apoiado! Apoiado! - bradaram várias vozes.

- Vejo com muito prazer - continuou o Araújo, com voz macia, de ronha espirituosa - que sou secundado pelos meus ilustres companheiros neste sentimento de respeito e admiração que nutro pelo favorito das Musas que hoje desce até nós! Proponho, portanto, que a comissão se componha dos senhores...

- Eu quero ser da comissão! - berrou o Zé Veiga. - Eu e o Monstro... Tu queres, ò Monstro?

- Valeu! - respondeu o Monstro, com voz nasal

- Bem! Já há dois... quantos são precisos?

- Pelo menos três... - redarguiu o Joaquim de Araújo - três são da praxe.

- Quem há de ser? - Interrogou o Veiga, circunvagando os olhos pelos circunstantes - Hás-de ser tu, Roberto! - disse ele.

- Eu não, não conheço o poeta, e não desejo atrair sobre a minha humilde individualidade o seu divino olhar... Tenho medo de fazer loucuras sob a irradiação ardente do seu estro inspiradíssimo... Reconhecendo-me pequeno ao lado dele, receio arrancar-lhe a lira das unhas e... partir-lha na cabeça!

- Pode, se quiser, fazer isso no fim... Mas primeiro deixe-lhe encher a barriga... - advertiu o Bonga.

- Que coma à vontade... essa é boa!

- Venha o Queirós Veloso! - intimou o Veiga.

- Pronto! - disse o Veloso - Eu não posso recusar-me a honrar a Besta nacional na figura do mais alto e ilustre poeta que os comunicados a pataco a linha jamais cantaram em suas colunas!

Organizada a comissão, foi ela postar-se à porta.

- Rapazes! - disse o Veiga, voltando à sala - não se arranjará por aí uma campainha?

- Para quê?

- Essa é boa! Quero tê-la na mão para a tocar em sinal de aviso, logo que o poeta dê entrada no templo...

- Essa é boa! - bradaram alguns.

O Veiga continuou:

- Logo que ouçam o primeiro repique, vocês levantem-se... hein? E em chegando à porta da sala repico com mais força... Então vocês, de pé, ou em cima dos bancos, entoam a Maria Cachucha... Valeu?

- Ò diabo! Mas isso será forte!

- Qual forte! - tornou o Veiga. Depois dele cá estar denttro, há-de cantar e dançar enquanto nós comemos... e no fim... come ele!

- Nada; não senhor!... Seriedade, seriedade... - recomendava o Araújo - Nada de ferir a sentimentalidade do poeta a ponto de o fazer chorar...

- Mas ao menos podemos recebê-lo com um hino? - insistiu o Veiga.

- Vocês sabem o coro da taberna do Roberto do Diabo? - inquiriu o Araújo.

- Nada de Roberto... Música portuguesa... Canta-se a Maria da Fonte! - gritou belicosamente o Veiga.

- Voto pela Cachucha! É mais lírica e mais expressiva! - observou um.

- Está dito! Seja a Cachucha! - aprovaram outros.


Enquanto isto se passava no Restaurante, o poeta Anastácio Gomes, prevenido pela carta de Camila, escoava-se surrateiramente do Lisbonense e, cosido com as paredes das casas, procurava o seu domicílio.

- Que grandes pandilhas! - murmurava ele. - Vá lá um homem fiar-se nestes bandidos que não têm talento nenhum e que não suportam que os outros o tenham! [...]


Dez horas e meia dadas e o poeta sem aparecer. Começavam os convivas já todos reunidos a inquietar-se.

- O homem tarda! - disse o Araújo, vindo à porta.

- Assim que ele chegar, ferro-lhe um ponta-pé - bradava o Veiga furioso, - para o ensinar a ser mais delicado para outra vez!

- O melhor - optou o João Novais - é dar princípio ao banquete... E se o homem vier até à sobremesa, come; senão, quando chegarmos ao fim, nomeia-se uma comissão que o vá procurar e que o traga aqui, vivo ou morto, a dar explicações... Não vale a pena deixar arrefecer o bacalhau!

- Sim, vamos ao bacalhau! - clamaram várias vozes.

Sobre a mesa foram postas três enormes travessas de bacalhau cozido com batatas e ovos.

- Vamos, meus senhores! - comandou o Araújo. - Está aberta a sessão... Os cavalheiros que preferirem boroa não têm mais do que prevenir o criado...

- Venha a boroa! - berrou o Bonga. - Quem diabo é que come bacalhau cozido com pão de trigo? Isso não é para mim, transmontano, que não preciso do molete dos tripeiros para ser filho de boa família!

O galego trouxe uma enorme boroa, que os rapazes desfizeram e deglutiram com uma voracidade de corvos sobre animal morto.

- Eia! Isto sim! Isto é que é banquete! - berrava um.

- Pedaço de asno de poeta! - gritava outro - Perder a ocasião de tirar o ventre de misérias! Não apanha outra em toda a sua vida!

- E então o vinho? - exigiu o Veiga - Isto vai a seco?

- É verdade! - clamou o Araújo - Rapaz! Serve o néctar dos deuses a estes senhores!

O galego, atarantado com a vozearia infernal dos estudantes, corria de um lado para o outro, já trazendo um talher, já um guardanapo, e gritando sempre:

- Pronto!

Foi trazido um garrafão de vinho, e as canecas cheias eram prontamente despejadas pela rapaziada.

Os ditos alegres esfusiavam, as gargalhadas estrugiam, e de vez em quando uma voz bradava:

- O pulha do poeta não vem! Mal sabe o que perdeu!


Do bacalhau cozido com batatas passara-se à pescada cozida, à pescada frita, aos bolinhos de bacalhau, a toda essa comezaina indigesta que só o estômago de rapazes pode suportar vitoriosamente numa noite de patuscada.

A esta pândega, pretexto para algumas horas de alegre convívio por pouco dinheiro, chamara o Araújo pomposamente - um banquete.

No fim, quando as travessas vazias davam lugar aos vinhos finos do Armazém da Estrela a dois tostões a garrafa, com os quais vinhos se faziam brindes de valor extraordinário pelo bom humor que os ditava, o Paranhos propôs que uma comissão fosse procurar o poeta e, fazendo-lhe compreender quanto a sua ausência fora notada e sentida, ali o levasse morto ou vivo, afim de ver com seus próprios olhos e ouvir com os seus ouvidos tudo quanto o seu alto génio inspirava de admiração e respeito àquela mocidade ardentemente entusiasta pelos maus versos e pelas boas orelhas.

Muito aplaudido o Paranhos, a cuja cara inimitável o vinho ia dando uma expressão cada vez mais picaresca, nomeou-se a comissão.

- Conservemo-nos em sessão permante, esperando a vinda do poeta... - propôs um.

- Como se disseramos a vinda do Messias! - acrescentou outro.

- Venha o poeta! Urge que o glorifiquemos! - bradaram várias vozes.

- Amigos e companheiros! - berrou o Veiga, que era um dos da comissão - aqui vos juramos solenemente, pelo vinho do Armazém da Estrela que, para o preço, vamos lá que não é má pinga, que não voltaremos aqui sem o poeta ou quem quer que seja que o represente!

E voltando-se para o grupo dos comissionados:

- Vamos!

- Hurra! - bradaram os convivas tocando os copos.


Passado um quarto de hora, o Veiga reentrou na sala e, impondo silêncio com um gesto, falou assim:

- Senhores e companheiros: não tendo podido haver às mãos o poeta Anastácio Gomes, o puro e autêntico Anastácio, em cuja honra esta festa é, eu e os meus colegas, vossos comissionados, tomámos o alvitre de o fazer representar aqui por um indivíduo da sua família e, posto que algum tanto dissimilhante na figura, perfeitamente igual a ele no engenho e arte e talvez mais que ele admirável na grande voz com que soe cantar o vasto poema de seus anelos e de seus amores! Ei-lo!

E apontando para a porta da entrada, apresentou aos circunstantes um magro jumento, em pelo, que, ladeado pelo resto da comissão descoberta e em atitude respeitosa, dava entrada na sala.

- De pé! De pé! - intimou o Veiga com voz de stentor, agitando os braços hercúleos. - De pé e entoemos o hino!

Chegou o burro até á mesa e estacou.

Os estudantes, de pé sobre os tamboretes e empunhado os copos, berraram furiosamente umas coplas que o Araújo havia composto e adaptado à música de um hino antigo que a companhia do Dallot cantava nas Carmelitas.

Fosse pelo efeito das luzes e pelo cheiro do vinho, fosse animado pela gritaria dos estudantes, o certo é que no fim da cantata o asno rompeu num zurro atroador e prolongado.

- Bravo, poeta! Bravo, Anastácio Gomes! - berravam os estudantes todos à uma, batendo as palmas.

E acto contínuo, o Araújo, grave e solene, pegou na coroa de cascas de alhos e aureolou com ela a cabeça do animal, bradando:

- Glória ao burro!

Nova e mais ruidosa gargalhada.

O motim dos estudantes havia atraído às portas da sala os criados do restaurante e os frequentadores curiosos de verem que pagode era aquele. E todos riam a bandeiras despregadas desta extravagância dos endemoinhados rapazes.

De repente um vulto alto, esguio e pálido, sinistramente entrajado de preto, sobrecasaca, chapéu alto amassado em partes e bengala de cana da Índia na mão, entra na sala e, dominando o tumulto, brada com voz cava, roucamente diabólica:

- Eu sou Falstaff!

E sem mais preâmbulos, cavalga o burro, bate-lhe com os calcanhares na barriga, dá-lhe um murro nas orelhas para lhe imprimir direcção e sai.

Era Alfredo Carvalhais, o poeta impecável, o boémio da penumbra, que o acaso levara ali nos caprichos da embriaguez.

A estudantada no auge do entusiasmo, saudou o poeta da Beatrice com aplausos ardentíssimos e vivas prolongados. E vendo-o partir pela porta fora, naquela burlesca atitude de Apolo cavalgando o Pégaso, seguiu atrás dele entoando um hino patriótico.


A patuscada findou na Batalha para não ir findar no Aljube.

Sem comentários:

Enviar um comentário