No rodar dos últimos trinta anos a Academia do Porto foi perdendo pouco a pouco prestígio e aquela graça sadia e moça que dava aos estudantes do burgo foros de casta privilegiada.
Quando nos iniciamos na pesada tarefa de conseguir uma carta, ao transpormos pela primeira vez os ombrais da Politécnica, foi pela “porta do cavalo” que conseguimos escapar ao vexame do cachaço e da chacota acerada dos veteranos, capitaneados pelo “Trinta”!
O edifício de então só praticável na parte do sul e do nascente, albergava ainda do lado do passeio da Graça, a figura mavórtica do cavaleiro S. Jorge que perfeitamente compatibilizado com a algazarra dos rapazes, aguardava estoicamente que o fossem buscar uma vez em cada ano, em seu cavalo branco ajaezado de solene gualdrapa, para dar volta à Cidade no meio dos sons estridentes dos clarins da guarda e das fardas dos circunspectos vereadores do município.
Tampouco o importunava a vizinhança do botequim do Chaves onde a academia se deliciava com o saboroso café, verdadeiro segredo de fabrico, a que, segundo as más línguas do tempo, não era estranho o... rabo de bacalhau...
Daquele pequeno quarteirão da Graça há tanto já demolido, só nos ficou a viva recordação dum cavalo de pau que um ferrador que ali morava tinha à porta e cuja história merece um comentário.
Passava por certo, que ignoto escultor tirara do mesmo tronco de castanho, a golpes de talento, duas das suas melhores obras: uma a que de perto pudemos, era o imponente ginete, gáudio do rapazio; a outra, recolhida hoje não sei em qual igreja da cidade, representava a piedosa imagem de S. Francisco!...
Somos levados a acreditar que o artista se consubstanciou na figura da primeira e para desconto dos seus pecados, tentou redimir-se, fazendo-se santeiro! As casas foram abaixo e o burro lá foi também com as canastras... Onde parará esse monumento?...
Tal era o pequeno bairro onde se desenrolava a parte da vida académica com paragem forçada à porta do Âncora de Ouro e ceata obrigatória em dias de abastança no restaurante Portugal ao tempo entaipado pela viela do Assis.
Não curava de dandismos a mocidade de então. Toda a sua indumentária se reduzia a um amplo gabão de Aveiro, chapéu braguês, “lavaliére” preta e no braço o gancho de um cerquinho ferrado.
Ainda as giletes não escanhoavam diariamente as faces glabras do moderno estilo e a barba crescia na cara dos rapazes tão desenvolta como a relva nos canteiros da Cordoaria... Tinham uma aparência máscula que se traduzia em factos quando era preciso jogar a bordoada com a polícia, como na célebre “campanha do ovo” nas vésperas do entrudo, em que até o recheio do laboratório de química veio cá para fora, escacando-se com fragor junto das árvores seculares que escondiam os vultos de certos disfarçados mantenedores da ordem, alerta na repressão dos distúrbios carnavalescos.
Eram homens que se viam passar de livro debaixo do braço para os estabelecimentos de ensino superior.
Os caloiros tremiam ante as barbas patriarcais do Comendador e do Trinta e suavam ouvindo as injecções mordentes do Godide e do Serafim de Barros...
No recheio da longa carreira médica figuravam como abantesmas as duas químicas, verdadeiros cabos tormentosos onde os adamastores também se duplicavam nas pessoas de dois mestres ao tempo no fastígio da sua qualidade, desandando no fim do ano uma saraivada de chumbos sobre a cabeça dos rapazes que mais parecia castigo do Olimpo que vontade de Minerva...
Aquelas sabatinas das segunda-feiras em Química Orgânica ficaram memoráveis entre os rapazes do meu tempo.
O mestre, que Deus tenha em bom descanso, não perdoava a cabulice e quando o velho Borges naquela hora matutina fazia a chamada, os já “tapados” entravam a cortar umas cólicas que nem as provocadas pelo óleo de rícino aplicado alhures em prol de nova política.
Ao escaparmos das malhas de tão emaranhado labirinto, respirávamos e a vingança vinha a lume na zargunchada dos testamentos do Judas, outro costume tão tripeiro, também caído em desuso. Lembra-nos um, em que o Vergílio Ferreira talentoso rapaz que a morte levou ao concluir a sua formatura, caricaturava com inexcedível graça os alunos e os mestres e em que um poeta que ainda hoje se delicia nas sombras do anonimato, assim legava ao professor de Orgânica:
Deixo ao Ferreira da Silva,E os rapazes riam, frequentavam os cafés em vez das leitarias, iam aos teatros e por toda a parte a sua algazarra punha uma nota estrídula na mazombice do burgo.
Um brinde que não esquece;
Um grande balão de vidro
Transbordando H2S!...
Não sei se ainda há estudantes. Nas raras vezes que vou ao Porto e passo a matar saudades em frente da antiga Politécnica, nada me faz lembrar a minha já longínqua mocidade.
Concluiu-se o antigo casarão, dando-lhe aspecto de casa de reclusos. Por entre as pesadas grades de ar conventual vê-se um ou outro vulto deslizando apressado como quem corre a toque de vésperas.
Na promiscuidade dos trajes aparece também um ou outro estudante de capa e batina a destoar nos hábitos tripeiros, como borrão de tinta em álbum de costumes.
Já não se distingue facilmente um estudante de um caixeiro do Chiado.
Ambos rapam a cara, ambos usam o cabelo lambido e lustroso à força das brilhantinas, ambos exibem os fatos desportivos mais ou menos cintados e para a miopia da graça e do espírito já não chegam todos os monóculos à venda nos oculistas da cidade.
As “matinés” dos cinemas acabaram com o passeio obrigatório das quinta-feiras nos jardins da Cordoaria e de S. Lázaro e as músicas regimentais passaram a tocar nas paradas dos quartéis.
Em vez do fado cantado a desoras, os rapazes contentam-se em ligar os impertinentes rádios, para o “retiro da Severa”.
As ceias do Ventura e do Marujo foram substituídas sem visível vantagem pelos chás na Arcádia e na confeitaria do Bolhão. E assim transmudada a Academia do Porto, nós que com ela vivemos o melhor da nossa mocidade sentimos indizível tristeza ao atravessar esse bairro do Carmo onde outrora acampava com alarido e balbúrdia a legião dos estudantes citadinos.
Agora que a inevitável ferrugem dos novatos nos vai mordendo as articulações por estas longas noites dum inverno rigoroso e gelado, apraz-nos no aconchego do fogão desfiar este rosário de lembranças, passando a letra de forma saudosas recordações da já centenária Academia Politécnica agora festejada e que nos leva a repetir, tanto a desconhecemos, o bafiento verso de Virgílio: quantum mutatus ab illo!...
Vila do Conde, Março de 1937
ARTUR DA CUNHA ARAÚJO
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