O “Central” e o “Chaves” eram os cafés preferidos pela Academia do meu tempo. No último, durante muitos anos instalado nos baixos do Hotel Francfort, entre o Laranjal e a rua de D. Pedro, bairros antigos que a Avenida do “bacalhau” fez desaparecer, juntavam-se quase todos os rapazes da Escola Médica em algazarra viva, a saborear o café da uma hora.
Havia um grupo de jogadores de xadrez com mais ou menos tineta para os intrincados lances do jogo espevitador por excelência da “substância cinzenta” e outro que preferia adestrar-se nas subtilezas das bolas a recuar e à massé, orientado pelo marcador, o “João do Lisbonense”, profissional aprumado e discreto, que já na casa dos setenta, ainda exibia as suas habilidades bilharistas.
Entre os habituais frequentadores do café do Chaves, figuravam comerciantes, empregados bancários que ali vinham de fugida sorver a goles apressados o moka rescendente e um ou outro janota de menos afazeres que procurava na convivência com estudantes um certo ar de intelectualidade.
Pertencia ao número destes últimos o sr. Guimarães, o homem mais bonito do Porto, como ele próprio se intitulava, perfeito “Don Juan” que só muito mais tarde teria competidor no sr. Cunha da Rasa. Aprumado nos seus fatos talhados pelo “Laranjeira”, com umas barbas bem cuidadas e que ao tempo faziam as delícias das costureiras dos “Hermínios” e do “Abel Brandão”, de botoeira sempre florida e um precioso chapéu à Rembrandt colocado com elegância, o “Cristo” como os rapazes lhe chamavam, fazia diariamente a “volta dos tristes” com a desenvoltura de um autêntico Brumell, a que não faltava sequer a nota arqui-mundana de umas irrepreensíveis polainas brancas.
Ora sucedeu uma vez que um estudante dos que mais de perto com ele conviviam, por necessidade de satisfazer qualquer inadiável compromisso, se abalançou a pedir-lhe uns cobres emprestados.
Solicitamente o nosso Cristo acedeu e ficou aguardando o prometido reembolso dentro do prazo estipulado. Os meses porém foram-se passando, o prazo findara há já bastante tempo e o rapaz nada de saldar a dívida. Invariavelmente o sr. Guimarães lá estava na porta do Chaves à hora marcada, mas o estudante é que jogava de porta com ele, evitando com astúcia o desagradável encontro.
Até que um dia fomos descortiná-lo cabisbaixo e sumido a um canto, receoso de ser abordado pelo impertinente credor.
Indagámos das causas de tamanha tristeza e logo ali se combinou a maneira de o libertar daquele pesadelo. Rabiscámos a lápis nas costas de um cartão do interessado um sonetilho de improviso que pouco depois, quando o Cristo apareceu, um criado reverente lhe foi entregar dentro de vistosa salva. Rezava assim:
Ò meu Cristo, ò meu senhor,
Redentor de nossos pais,
Só Te peço, por favor,
P’ra não me chateares mais.
Nem andes morto e exangue
Dos cafés, pelos portais,
A derramar o Teu sangue,
Por causa destes pardais...
Eu bem sei que És generoso,
Que um erário fabuloso,
Esgotaste até ao fundo...
Mas já que os justos apontas,
Bem sabes que as nossas contas,
Se pagam... no fim do mundo!...
O Cristo leu, releu, esboçou um sorriso tocado de leve azedume e saiu em direcção da Praça, guardando no bolso do colete, por saldo de contas, o bilhetinho. E nunca mais importonou o rapaz.
II
Entre os alunos do meu curso, destacava-se, não por ser oriundo de “San Tomé” mas pelo brilho
da inteligência e do espírito, o Luiz Gonçalves de Sousa Machado hoje médico distintíssimo naquela formosa ilha e que já há muitos anos não temos o prazer de abraçar.
Um dia o Luiz Machado apareceu à porta da Escola, radiante, exibindo uma riquíssima bengala de cavalo marinho, com castão de prata, onde artisticamente se entrelaçavam as iniciais do seu nome.
Os condiscípulos exaltaram a magnificência daquela obra de arte, e a bengala andou de mão em mão, com mal disfarçada vaidade do seu possuidor que, risonho, aceitava os remoques um tanto invejosos dos condiscípulos, empenhados em adivinhar a proveniência de tão luxuosa dávida.
Uns alvitraram que tinha sido presente de roceiro endinheirado; outros que era prenda de alguma azougada mulata, apaixonada pelo futuro doutor. Até que chegando às mãos de um, pôs-se este a ler com vagar as iniciais gravadas no castão e gritou entusiasmado: Eureka! Eureka!...
Correram para ele os condiscípulos na ânsia de decifrar a chave do enigma. L! G! S! M!
Não sabeis o que quer dizer?
- Lembrança do Gungunhana ao seu muleque!... Uma estrepitosa gargalhada ecoou e o Luiz Machado, honra lhe seja, não foi dos que menos se riu, com a maliciosa interpretação das lindas letras esculpidas no castão de prata da sua preciosa “badine”.
III
Já lá vão uns trinta anos seguros[1] depois que uma revista teatral, o A.B.C., se bem me lembro, lançou pela boca da mais desenvolta “estrela” de então, a Júlia Mendes, um fado que correu os salões da alta burguesia e chegou aos mais recônditos cantinhos da província: o fado liró!
Nas ruas, nos cafés, à porta dos mercados, por toda a parte enfim, só se ouvia assobiar o famigerado fadinho. A briosa[2], que nesse tempo não desdenhava de empunhar a sua guitarra, foi das primeiras a ir cantar à porta das várias “Dulcineas” as sextilhas delambidas impressas nas coplas da revista. Forçoso era libertar o espírito académico daquela ronceirice metrificada e nasceu então o “Fado da medicina” que correu anónimo por mãos de mestres e de alunos e onde uns e outros eram mais ou menos zargunchados com piadas certeiras.
Um professor sei eu que ao ver-se alvejado nas sextilhas mordazes, resolveu pagar um bom acto[3] de Patologia geral com uns míseros “onze valores”, aplicados à ciência do aluno que ele suspeitava ser o autor da brincadeira.
É que a sextilha irreverente dizia:
Qualquer faia canta o fado
Para ficar aprovado
No sábio patologista...
Fez um fado o Aguiar
Somente para provar
Que também era fadista!
Embora o mestre não tivesse as tendências que os versos lhe atribuíam, fornecia invariavelmente a todos os seus cursos uns apontamentos, a que os rapazes chamavam o “fado”, que tinham que ser papagueados de lés a lés sem hesitações, durante o ano, e sob pena de um chumbo garantido a quem no acto os não trouxesse também na ponta da língua.
Daí o remoque e a respectiva... compensação...
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As cólicas que alguém cortou por passar por autor da sátira inofensiva tinham sido atenuadas no ano anterior por um feriado na aula do Prof. Luiz Viegas, mais indulgente com as brincadeiras dos rapazes. Uma manhã, quase no fim do ano lectivo, quando uma lição de anatomia sobre “centros nervosos” trazia os “cepos” assarapantados e receosos de um estenderete raso, resolveu-se lá em baixo no porão, como os alunos chamavam ao teatro anatómico, organizar um grupo orfeónico. E quando o mestre entrou para dar aula, o tenor melhor da companhia, logo secundado pela malta, disparou-lhe esta comovente súplica, com música do liró:
O fado tem tal meiguice
Que o Viegas se o ouvisse
Decerto não resistia...
Rapazes: cantai o fado,
Quando quiserdes f’riado,
Na aula de anatomia...
O coro atroador na ressonância das paredes, respondeu:
Cantam o fado as parteiras,
Boticários, enfermeiras,
Tudo num coro infernal...
E na própria Academia
O Arroio já assobia,
O fadinho em mineral...
Mal contendo o riso, o Prof. Luiz Viegas chamou o “Vitorino”, já pronto para para marcar faltas e dispensou os alunos nesse dia.
A alegria sentida na ocasião pelos rapazes, traduzo-a eu, hoje, pelas lágrimas que me afloram aos olhos, recordando a bondade do professor já morto e essa mocidade irrequieta e feliz que já morreu também!...
IV
Nunca mais entrei depois de formado no vetusto casarão de aspecto conventual, rígido na espessura friorenta do seu granito, que é o Hospital da Misericórdia.
Aquelas enfermarias do meu tempo, e que decerto ainda não mudaram no seu aspecto típico, faziam-me calafrios e dispunham-me mal os nervos.
Perpassava nas galerias sombrias a ressumar água no inverno, um cheiro misto de desinfectantes e de comidas que me parece sentir às vezes na pituitária.
A aula e enfermarias de clínica médica eram lá em cima num ângulo quase virado ao poente e para lá chegar subiam-se uns infindáveis degraus de pedra onde as passadas ecoavam como pancadas lúgubres em caixão mortuário. O ar desconfortável daquelas salas enormes, onde uma ou outra enfermeira punha a nota sorridente duma jarrinha de flores para ter a impressão que nem tudo era doença e desconforto, aborreciam-me e afugentavam-me.
Quando pelas oito horas, pouco mais, o Prof.Tiago de Almeida entrava no Hospital e atravessava o átrio agasalhando na sua comprida peliça os pulmões ressentidos de velhos achaques, nós lá seguíamos atrás do mestre, por vezes a tiritar de frio e mortos por sair daquela geladeira.
Eram duas horas de sacrifício, só amenizadas pelas palestras científicas do Prof. Tiago, que punha meticulosos cuidados na maneira prática de nos ministrar os conhecimentos que deviam aproveitar mais tarde à nossa educação clínica.
Os doentes escolhidos para a nossa aprendizagem eram submetidos a um aturado exame por parte dos alunos a quem o mestre chamava um por um, para melhor fixarem os sintomas objectivos. Não fazia segredo das subtilezas da profissão, e tudo o que sabia, e como melhor podia, entregava generosamente à nossa natural curiosidade.
Esta confissão devemos à honrada memória do que foi, por assim dizer, o iniciador do estudo clínico prático na Escola Médica do Porto.
E porque assim foi e porque todo o nosso pouco saber de “João Semana” a ele o devemos e como respeitosa gratidão já confessamos, vá de contar uma partida passada na enfermaria de clínica médica.
Iam ali parar todos os anos, sobretudo no inverno, desgraçados a quem as profissões violentas e o frio faziam adoecer com pleurisias. Os derrames por vezes eram quase asfixiantes e o mestre adestrava-nos na extracção do líquido que abafava os doentes. Estes bem diziam dos rapazes quando os aliviavam de alguns litros daquela serosidade que lhes imprensava dolorosamente os pulmões e prometia sufocá-los. Antes porém, o professor fazia-nos auscultar cuidadosamente os doentes e percuti-los para termos a certeza que pleuríticos se tratava.
Havia um sinal característico que ele sempre nos obrigava a indagar: o sinal da moeda ou do Pitres, como era mais conhecido. O mestre tirava duas moedas de cobre da algibeira e com elas batia na parte anterior do tórax dos doentes, mandado-nos ouvir na parte posterior o som metálico nítido que se transmitia através da massa líquida. Depois, passava as moedas de mão em mão para que todos os alunos constatassem o fenómeno.
Alguém que propositadamente se deixava para o fim guardava os dois vinténs, e ía regaladamente com eles tomar café ao “Chaves”.
A peripécia repetiu-se algumas vezes, até que um dia o Prof. Tiago, já com a pedra no sapato, chamou o aluno useiro e vezeiro e disse-lhe: vamos lá observar este doente, mas puxe você pelo pataco, que eu já estou farto de lhe pagar cafés!... Omite-se por dispensável o nome do estudante, para só destacar com merecida evidência a figura inconfundível do Prof. Tiago de Almeida, que sabia fazer de cada aluno um amigo, naquele casarão húmido e triste da Misericórdia, onde ele estoicamente professou durante mais de vinte anos, com desusado brilho, a nobre arte de Hipócrates.
Vila do Conde, Maio de 38
Do livro em preparação
“Mestres e rapazes do meu tempo”
ARTUR DA CUNHA ARAÚJO
[1] Recorde-se que este texto foi escrito em 1938.
[2] A palavra "briosa" é frequentemente usada para designar a Academia de Coimbra, ou mais precisamente a Associação Académica de Coimbra (principalmente, depois dos anos 20, a sua equipa de futebol). Aqui é usada simplesmente para referir a academia, neste caso a do Porto.
[3] A palavra "acto" é usada aqui ainda com o significado de exame.
Caro João, é com enorme satisfação que -e dando já por perdido... - vejo o "Porto Académico" de novo, julgando que com o fecho da Geocities se tinha perdido este material!!!
ResponderEliminarObrigado pela persistência e continue a deleitar-nos com estas pérolas da nossa Academia do Porto!
Já agora, é capaz de lhe interessar:
ResponderEliminarhttp://portuscaletunae.blogspot.com
Abraço!
O fecho do Geocities não é grande problema. Muito pior é a minha falta de tempo. Só de vez em quando vou arranjando uns minutos para a simples tarefa de adaptar o formato dos textos a entradas de blogue.
ResponderEliminarJá conhecia o Portus Cale Tunae (e reconheço por lá algumas coisas...). Claro que interessa!
Um abraço.
E faço a devida citação por para lá de justa inteiramente merecida!
ResponderEliminarSe porventura tiver material na sua posse de interesse tunante, agradeço-lhe desde já a sua publicação!
Abraço!