terça-feira, 23 de março de 2010

D. Ana dos Estudantes

[Sá d’Albergaria, O segredo do Eremita, vol. 5, 1904, págs. 240-249][1]


A D. Ana dos Estudantes era [...] a mais conhecida, mais antiga e mais económica hospedeira dos académicos, no Porto.

Nova ainda, viera estabelecer-se com quartel de estudantes ao cimo da Rua da Fábrica, em frente à Praça de Santa Teresa, numa casa de dois andares, de modestíssima aparência e engrinaldada a frontaria com uma videira antiquíssima que todas as primaveras bracejava a verdura dos seus pampanos por todo o prédio, dando-lhe um aspecto pitoresco.

Era a casa da ramadinha.

A D. Ana, que se conservava sempre irrepreensivelmente honesta, sem que a sombra de uma suspeita pudesse jamais macular-lhe a reputação de casta vestal, que soubera conquistar e manter, vira passar e abrigar-se sob os seus tectos hospitaleiros sucessivas gerações de académicos, desde 1840 até 1892, em que morreu centenária.

Ali se hospedou também, quando estudante, Camilo Castelo Branco[2], a mais legítima e explendente glória das letras portuguesas, e não foram pouco amargas as reminiscências que o grande romancista deixou de si à heróica hospedeira, na sua passagem por aquela casa.

- Nunca cá veio um maldito mais endiabrado do que aquele! - comentava escandalizada.

E contava as partidas que ele lhe fizera.

A D. Ana cobrava um tanto de aluguer de cada quarto, mobilado à custa do hóspede, e cozinhava para os seus locatários, o que cada um queria comer, limitando-se a receber por esse trabalho 600 réis mensais.

Os estudantes forneciam os géneros ou pagavam-nos pelo preço do mercado, na razão do consumo.

Assim, cada qual media-se com as suas posses e, se era rico, comia bem, se era pobre, comia mal, e se não tinha dinheiro, não comia nada.

Camilo parece que era frequentemente dos últimos.

Um dia, um estudante abonado permitiu-se o luxo principesco de querer banquetear-se com uma galinha corada. Deu para isso dinheiro e ordem à D. Ana que, como boa e fiel hospedeira, tratou de cumprir a incumbência recebida.

Estava a galinha na fornalha do fogão, a dizer “comei-me, comei-me”, à espera do dono e a D. Ana a regalar-se de antemão com os gabos e louvores que a sua habilidade culinária ia render-lhe por parte do hóspede.

Nisto, chega Camilo. Vinha esfaimado e sem dinheiro. Atraído pelos rescendentes aromas de tão lauta petisqueira, espreita para a fornalha e, numa volta de mão, sem a D. Ana dar fé, passa a luva à galinha, safa-se com ela par o seu quarto e come-a mais sôfrego do que raposa em capoeira.

Quando a D. Ana deu pela ausência da ave, o Camilo quis meter-lhe em cabeça que talvez ela não estivesse bem morta e apanhando a fornalha aberta, voasse para algum quintal vizinho.

Mas a D. Ana, indignada, relacionando factos e traduzindo risos, lançou à responsabilidade de Camilo a negra acção.

O futuro romancista pagou mais tarde a galinha, mas não conseguiu reabilitar-se no conceito de D. Ana, que na estirada carreira de longeva e quando o nome de Camilo enchia, ele só, a literatura do seu país, contava ainda o horrendo caso, concluindo:

- A galinha pagou-ma, isso é verdade, mas eu nunca lhe perdoei nem posso perdoar o desgosto que me deu a mim e ao outro desgraçadinho!

O outro desgraçadinho era o estudante que devia comer e não comeu a galinha.

De outra vez a D. Ana tomara o pão ao padeiro, e viera colocá-lo na sala de jantar, onde já estavam vários estudantes reunidos à espera do almoço.

Entre eles, Camilo alegrava a conversação com os diots cintilantíssimos so seu espírito superior, que mais tarde devia afirmar-se em livros imorredouros.

A hospedeira infatigável andava numa dobadoura, da sala para acozinha, e da cozinha para a sala.

De repente, por um palpite secreto, vai contar o pão e acha um de menos.

- Falta aqui um pão! - bradou ela. - Qual de vocês foi que o tirou?

Todos responderam: “Eu não!” - incluindo Camilo, que foi um dos primeiros na negativa.

Mas a D. Ana, relanceando pelos rapazes um olhar investigador, exclamou:

- Foi você, seu Camilo!

E sem mais preâmbulos, atirou-se a ele, apalpou-lhe o casaco e sacou-lhe triunfante de um dos bolsos o pão que faltava na cesta.

- D. Ana, - respondeu impertubável o futuro autor do Amor de Perdição - a senhora está enganada, esse pão não lhe pertence.

- Ora essa, não me pertence e falta ali!...

- Garanto-lhe que esse pão é meu. Como sou muito devoto, rezo todas as manhãs o Padre Nosso. E como lá se diz: o pão nosso de cada dia nos dai hoje, Deus ouviu a minha súplica e fez saltar esse pão para o meu bolso sem eu dar por isso, porque estava na sua divina vontade e mais na minha que eu o comesse...

Os condiscípulos celebraram com grandes gargalhadas o gracejo; mas a D. Ana, que tinha um génio irascível, de mulher rude e analfabeta, tomou a sério a brincadeira e cobriu o endiabrado hóspede de imprecações e doestos.

Sob as aparências de criatura intratável, grosseira e egoísta, a D. Ana tinha contudo um fundo de bondade extrema.

Entre os seus hóspedes mais notáveis, figurava o Rosalino, o célebre autor do Diabo fechado na minha gaveta e de tantos outros livros que adiantaram 40 anos à literatura nefelibata que alguns moços esperançosos dos nossos dias ainda cultivam, ingenuamente persuadidos de que são originais e imprimem uma nova orientação às letras pátrias.

Ah! Se esses moços conhecessem o Rosalino! Se lessem o Jovem Ancião, a Besta dos Mil e Um Epítetos, Dois de Contra ao Snr. Doutor, e a Luz da razão, então veriam com grande surpresa sua, que estão atrasados quase meio século na escola de que Rosalino foi o precursor, em que pese à França, mãe fecunda das mais belas criações e das mais insólitas aberrações do espírito humano.

O Rosalino morreu há dias, no hospital de S. José, em Lisboa, talvez com 70 anos, 50 dos quais de vida boémia, passada no Porto, Coimbra e ultimamente na capital.

Ilustrou as diferentes gerações académicas das três cidades com os seus opúsculos literários e filosóficos que ele próprio ia entregar, cobrando altivamente o tostão, que era o preço da obra, sem aceitar nem mais um real - porque não recebia esmolas.

Era de um carácter íntegro, fundamentalmente honrado, incapaz de um pensamento sequer que não fosse ditado pelo mais rigoroso sentimento da dignidade própria e do respeito pela dignidade alheia.

A velha hospedeira, conhecendo que o Rosalino Cândido sofria impávido as mais cruéis privações, nada mandando cozinhar porque nada podia pagar, chamou-o e disse-lhe com tocante singeleza:

- Ò sr. Rosalino, você não quer comer?

- Estou tratando da preparação de um livro, e quando assim é, perco o apetite e nem me lembra que preciso de me alimentar - respondeu o filósofo.

- Bem, mas então se você quer, venha comer todos os dias e, quando arranjar lá a sua vida, me pagará.

- Pois sim...

O Rosalino passou daí em diante a alimentar-se a expensas da D. Ana.

Havia, porém, uma dificuldade a resolver: - era o quarto.

Rosalino não podia pagar e a D. Ana não podia prescindir do aluguer.

Mas pôr o poeta na rua, fazê-lo dormir ao relento nas noites nevoentas e frigidíssimas do Porto, era uma crueldade que repugnava ao coração da pobre mulher.

Como fazer? Ocorreu-lhe uma idéia salvadora.

O bibliómano João Vieira Pinto, delegado de saúde e solteirão excêntrico, sempre embrulhado em dois casacos e dois cache-nez, e todo entregue à pesquisa de livros e objectos raros, ocupava um prédio de dois andares no Campo dos Mártires da Pátria. Na ânsia de economizar mais dinheiro para poder comprar mais livros, o João Vieira encarregara a D. Ana de lhe fornecer a comida por preço módico.

A D. Ana mandava-lhe o jantar, ao fim da tarde, por uma das muitas velhas, criadas de servir desarrumadas, que sempre tinha em casa.

O Rosalino acompanhava a portadora e ficava oculto no portal, pelo lado de dentro da cancela, enquanto a servente subia com o jantar para o doutor.

Logo que este se sentava à mesa, o Rosalino subia a escada, pé-ante-pé, e enfiava-se na vasta biblioteca, onda havia um velho sofá de molas e muitos cobertores de estofo e antiguidade respeitável.

Era ali que ele dormia.

Às vezes sucedia, noite alta, o velho João Vieira Pinto, para tirar dúvidas de catálogo, dirigir-se à livraria com uma vela na mão.

Mal lhe sentia as moiras a arrastar, o Rosalino dava um pulo e resvalava para debaixo do sofá, afim de que o dono da casa não desse pela sua presença.

Assim que o via retirar-se, voltava para cima do sofá e lá ficava toda a noite, às escuras, a sonhar com a glória imensa que lhe adviria dos seus indignados protestos contra as misérias humanas.

Foi lá que ele meditou o seu curioso opúsculo: O mundo não se endireita, mas eu não largarei nunca o mundo!

Pobre visionário!

Isto durou meses, talvez anos.

Pois o Rosalino, podendo impunemente apropriar-se de um livro, de um objecto raro, que os havia lá aos milhares, sem que o dono desse por isso, porque na confusão daquele imenso amontoado de coisas não era fácil abrir falha sensível, abandonou ao cabo de muito tempo aquele abrigo com as mãos tão limpas como a consciência, nunca sombreada de um pensamento repreensível.

Contava isto a D. Ana, nos últimos anos da vida e quando Rosalino trocara já os seus passeios favoritos de S. Lázaro, Cordoaria e Virtudes, pelas poéticas inspirações do Penedo da Saudade, na Lusa Atenas.

Mal sabia a pobre mulher, que atestando a exemplar honradez de Rosalino, passava a si própria um curioso diploma de perspicácia que muitos dos que com ela privaram talvez lhe negassem.

Para completar o perfil desta excêntrica e singular patroa de estudantes, diremos que trabalhou até aos 103 anos de idade com que morreu. E tendo no Brasil dois sobrinhos que lhe enviavam regularmente uma mesada avultada, deixou na mão do procurador desses sobrinhos todo o dinheiro, sem utilizar um só real, porque, dizia ela, podia trabalhar e por isso não precisava.




[1] O segredo do Eremita é um romance, mas o autor chama-lhe "romance de costumes" e diz no prefácio que "os seus personagens existiram" e "tudo que aí se conta sucedeu" (vol. 1, 1902, págs. 6-7). Esta secção, envolvendo pelo menos duas personagens comprovadamente históricas (Camilo Castelo Branco e Rosalino Cândido), é bastante verosímil, pelo menos nos seus traços gerais .

[2] Provavelmente depois da sua passagem pelo “pardieiro” da Rua Escura.

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